MPF_ O Ministério Público Federal (MPF) ingressou com ação civil pública
contra o Estado de Minas Gerais por descumprimento da Emenda
Constitucional 29/2000, que fixou a obrigatoriedade de aplicação do
percentual mínimo de 12% do orçamento em ações e serviços de saúde
pública, como atendimentos de urgência e emergência, investimentos em
equipamentos e obras nas unidades de saúde, acesso a medicamentos e
implantação de leitos.
De acordo com a ação, o governo estadual, por 10 anos, entre 2003 e
2012, descumpriu sistematicamente preceitos legais e constitucionais,
"em total e absurda indiferença ao Estado de Direito", efetuando
manobras contábeis para aparentar o cumprimento da EC 29.
Na prática, "R$ 9.571.062.581,53 (nove bilhões, quinhentos e setenta e
um milhões, sessenta e dois mil reais e cinquenta e três centavos)
deixaram de ser aplicados no Sistema Único de Saúde (SUS) pelo Estado de
Minas Gerais", quantia que, em valores atualizados, "corresponde a um
desfalque de R$ 14.226.267.397,38".
O resultado desse descaso, prossegue a ação, revela-se com as "filas
extenuantes, a falta de leitos nos hospitais, a demora que chega a
semanas e até meses para que o cidadão se entreviste com um médico, a
demora na marcação e na realização de exames clínico-laboratoriais, as
mortes nas filas dos nosocômios, as doenças endêmicas que vez por outra
castigam a população (como foi o caso recente da dengue), a falta de
remédios a serem distribuídos à população, etc.".
Para os procuradores da República, não é sem razão que após tantos
anos investindo no SUS bem abaixo do mínimo constitucional, “o serviço
público de Saúde, embora considerado o mais importante pela população,
alcançou, em 2009 e 2010, os piores índices de satisfação” dentre os
serviços públicos prestados pelo Estado de Minas Gerais, conforme
relatório técnico do Tribunal de Contas do Estado (TCE) sobre as contas
do governador do Estado no Exercício 2011.
Manobras para inflar dados - Por 10 anos, o governo estadual incluiu
gastos estranhos à saúde para simular o cumprimento da obrigação de
investir o mínimo constitucional.
No caso dos estados, os 12% são compostos por recursos públicos
oriundos de transferências da União via Fundo de Participação do Estado
(FPE) e de arrecadações de impostos estaduais (ITCD, ICMS e IPVA). Esses
recursos entram no caixa do Estado a título de orçamento vinculado, ou
seja, devem ser obrigatoriamente aplicados na Saúde Pública.
A legislação, inclusive, dispõe, de forma explícita, para não restar
dúvidas ao governante, que os recursos vinculados ao cumprimento do
mínimo constitucional em saúde devem ser investidos em ações e serviços
"que sejam de responsabilidade específica do setor de saúde, não se
confundindo com despesas relacionadas a outras políticas públicas que
atuam sobre determinantes sociais e econômicas, ainda que com reflexos
sobre as condições de saúde", como o saneamento básico, por exemplo.
No entanto, para os governos que administraram o estado naquele
período, entraram como se fossem gastos com saúde pública até "despesas
com animais e vegetais", já que verbas direcionadas ao Instituto Mineiro
de Agropecuária (IMA) e à Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM)
foram computadas como gastos com saúde.
Interessante é que, antes de 2003, tais despesas eram incluídas na
função adequada (no caso do Ima, função 20-Agricultura; no caso da Feam,
função 18-Gestão Ambiental), mas passaram a ser contabilizadas como
saúde a partir daquele ano para fugir ao cumprimento do mínimo
constitucional.
E a mesma manobra foi feita em diversas outras áreas, incluindo
repasses a entidades assistenciais, como a Coordenadoria de Apoio e
Assistência à Pessoa Deficiente, além do pagamento de benefícios
previdenciários a servidores ativos e inativos do estado, o que é
expressamente vedado pela Lei Complementar 141/2012.
Nesse ponto, o MPF lembra que a LC 141 foi editada com o propósito de
regulamentar a EC 29, mas, na prática, apenas reforçou todo o arcabouço
legislativo já existente, inclusive repetindo o texto de normas de
natureza infralegal, como a Resolução nº 322/2003, do Conselho Nacional
de Saúde, que elenca expressamente as inclusões proibidas.
Uma dessas vedações diz respeito à inclusão de verbas destinadas ao
pagamento de aposentados e pensionistas, principalmente porque se trata
de beneficiar uma clientela fechada, contrariando o princípio da
universalidade e gratuidade do SUS. Conforme destacou a Comissão Técnica
do TCE-MG ao rechaçar a aplicação, as ações e serviços de saúde
prestados por entidades como, por exemplo, o IPSEMG, IPSM e Hospital
Militar, são de "acesso restrito aos servidores e a seus dependentes e
inclusive por eles custeadas", não sendo, portanto, nem "gratuito nem
universal, uma vez que só podem usufruir da assistência prestada por
esses Institutos aqueles que contribuem diretamente, quer sejam
segurados da ativa, inativos, pensionistas ou seus dependentes, não
sendo permitido aos cidadãos em geral utilizar-se da referida
assistência".
Chama ainda atenção o fato de que as receitas que custeiam tais
serviços originam-se de fontes próprias - do próprio servidor, que
contribui com 3,2% da sua remuneração frente aos 1,6% do Estado, no caso
do IPSEMG e IPSM -, ou do pagamento de taxas arrecadadas pela atividade
policial.
Ou seja, para alegar o cumprimento da EC 29, os governos estaduais,
de 2003 a 2012, consideraram não apenas a receita vinculável (FPE +
impostos), "mas também despesas que foram suportadas por recursos
diretamente arrecadados, ou seja, que sequer representaram efetivos
gastos para o Estado, não consistindo em investimentos reais deste.
Assim, conseguiu que um maior valor do próprio orçamento fiscal ficasse
livre para outros gastos que não em saúde".
Para o MPF, "Valer-se destes valores pagos pelos usuários ou oriundos
de terceiros, computando-os na soma de investimentos públicos estaduais
como se fossem a mesma coisa, é uma inegável artimanha para inflar
números e distorcer a realidade".
"Para além disso, o Governo de Minas Gerais chegou ao absurdo de
incluir como se fossem aplicações em ASPS serviços veterinários
prestados ao canil da 2ª CIA, reforma da maternidade da 4ª CIA Canil do
BPE, serviços de atendimento veterinário para cães e semoventes,
aquisição de medicamentos para uso veterinário, aquisição de vacinas
para o plantel de semoventes", relata a ação.
Copasa - Mas os valores de maior vulto, indevidamente incluídos para
simular a aplicação do mínimo constitucional, foram direcionados à
Copasa, uma sociedade de economia mista que presta serviços de água e
esgoto mediante a cobrança de tarifas aos consumidores mineiros. Embora o
Estado detenha o controle acionário da empresa, 41,59% de seu capital
pertence a outros acionistas, entre eles bancos estrangeiros.
Pois os governos estaduais contabilizaram os gastos feitos pela
Copasa com saneamento básico - que, segundo a própria empresa, foram
despesas pagas majoritariamente com recursos oriundos de tarifas pagas
pelos consumidores, além de recursos oriundos do lançamento de ações na
bolsa de valores e de contratos de financiamento - como despesas com o
SUS no cumprimento do mínimo constitucional.
Lembrando que também neste caso, até 2002, os investimentos em
saneamento básico eram agregados na função 17-Saneamento, o MPF destaca
que serviços pagos pelo consumidor vão de encontro à natureza dos
serviços públicos de saúde, que devem ser obrigatoriamente gratuitos.
Além disso, a Copasa sequer integra o orçamento fiscal do estado,
pois se trata de uma pessoa jurídica de direito privado, não estando
integrada, portanto, ao SIAFI, para controle da regularidade no uso de
recursos públicos. "Não é sem motivo, portanto, que no decorrer de todos
os anos de práticas irregulares, a CAEO [Comissão de Acompanhamento da
Execução Orçamentária do Estado] ressaltou a má-fé do governo ao
misturar a COPASA com as reais despesas do Estado em saúde, para fins de
tentar parecer cumprido o mínimo garantido pela Constituição", afirma a
ação.
Para se ter ideia do prejuízo ao SUS causado pela inclusão indevida
da Copasa no quadro geral de valores que o governo estadual alegava ter
investido em saúde, basta ver que esses recursos já chegaram a
representar até 37,18% do total, como ocorreu em 2006.
Por sinal, naquele ano, "apenas 43,57% da quantia que o Estado
afirmava ter investido em saúde realmente reverteu em benefício de ações
universais e do SUS. Mais da metade, na verdade, dizia respeito a
saneamento básico, previdência social, serviços prestados a clientela
fechada e verbas diretamente arrecadadas que sequer provinham do
orçamento fiscal estadual, as quais jamais poderiam ter sido incluídas
no cálculo do piso constitucional em saúde".
"Ver-se diante da crua realidade de nossos hospitais não deixa
ignorar que, caso os bilhões de reais que deixaram de ser investidos no
SUS em virtude de distorções nos cálculos do Governo de Minas tivessem
sido direcionados corretamente, o cenário poderia ser diferente",
afirmam os procuradores da República.
Pedidos - A ação pede que a Justiça Federal determine à União
condicionar o repasse dos recursos do Fundo de Participação dos Estados
ao efetivo cumprimento da EC 29 pelo Estado de Minas Gerais, com a
aplicação, nos próximos anos, dos 14 bilhões que deixaram de ser
investidos entre 2003 e 2012. Ou seja, além do valor que o Estado deverá
investir normalmente, o governo ainda terá de acrescer parcelas que
resgatem a quantia não aplicada nos anos anteriores.
Para isso, o Estado deverá apresentar, no prazo máximo de seis meses,
estudos técnicos contábeis e econômicos que demonstrem o valor
percentual necessário e possível a ser acrescido à percentagem relativa
ao mínimo constitucional (EC nº 29/00) em cada um dos próximos anos, até
que seja sanada sua dívida.
Pede-se ainda a criação, ainda para este ano de 2015, de conta
corrente específica para receber os recursos vinculados ao cumprimento
do mínimo constitucional.
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