Há
crimes piores, sim
Antonio Falcão
Vindo de família bem-sucedida, um europeu ainda adolescente
foi estudar num seminário religioso. E, uma vez ordenado, pediu aos superiores
pra servir a Cristo numa comunidade miserável da América Latina. Essa opção foi
igualmente aceita pelos seus ricos familiares e para estas bandas ele veio se
solidarizar com os mais carentes.
Aqui, o rapaz se enturmou com os favelados e com eles, atrás
da igreja, construiu para si um quartinho com privada e banheiro. Enquanto isso,
inteirou-se das necessidades comunitárias. E no decorrer da obra social soube
que muitos se drogavam, como Lola e Raúl, pais de Juan, de 12 anos. Nos cultos,
esse guri coletava esmola dos fiéis. Mas, aos poucos, o religioso descobriu que
ele desviava a metade dos donativos para comprar maconha. Então, foi ao casebre
do moleque falar sobre isso com Lola. Esta, sem rodeio, disse-lhe que não ia
coibir nada, pois ela e Raúl também davam uns tapas na erva. E que só não
permitia Juan cheirar cocaína por duas razões: o custo da droga e a tenra idade
do garoto. “Apenas por isso”, expôs cinicamente a mãe.
Porém, dias adiante, Raúl liderou o saque a um supermercado
próximo da favela. E, à noite, foi com Lola e Juan pedir ao religioso que os
homiziasse. Ainda justificou a escolha do quarto do europeu: “Ninguém vai
pensar que estamos nos fundos duma igreja.” Assim, ficaram uma semana, até
fugirem para outra cidade. Após esse episódio, por dever de consciência cristã,
o religioso confessou a um colega da igreja que escondera a família. Só que o
outro viu isso como hediondo. E o europeu ponderou: “Nesta faminta América Latina,
meu caro irmão em Cristo, há crimes piores, sim. Veja a roubalheira de
governantes, parlamentares e, até – pasme –, juízes. Eles se apropriam do
dinheiro público e, que se saiba, continuam impunes. Diante disso, eu lhe juro
pela minha crença em Deus, saquear supermercado é, por si, atenuante. E, para
mim, esse delito não significa nada.”
Mas significou: com a deduragem do colega, os superiores o fizeram
voltar pra Europa. E no Velho Mundo vai envelhecer.
PS: Meus cumprimentos aos integrantes
da pernambucana Comissão da Verdade. E com um abraço em Socorro, Humberto e Franca.
Antonio Falcão é escritor.