Do site Tijolaço
Por Fernando Brito
“O
ministro Luís Roberto Barroso manifestou-se, ontem – como se fosse o
maior absurdo – , contra o cumprimento da determinação constitucional de
que um parlamentar só possa ser preso (e pode, em flagrante) sem
autorização do Poder Legislativo.
Já seja um paradoxo um “guardião da Constituição” levanta-se contra o que está expresso nela, há mais.
Na
cantilena do fim do fim do privilégio de foro – que malandramente é
chamado de foro privilegiado – esconde-se uma demagogia que visa
manietar qualquer governo que este país venha a a ter e que,
eventualmente, represente a vontade popular.
Quer uma prova?
Sem
privilégio de foro, qualquer juiz de comarca – milhares em todo o país –
pode acolher queixa ou denúncia pessoal – cível ou criminal – contra o
Presidente da República, ministros de Estado, senadores, deputados.
Não
escrevo para fazer demagogia fácil, “democratista”. A mim importa
ajudar a refletir e escapar do ensurdecedor canhoneio do “senso comum”,
que não é outra coisa que o trovejar da mídia.
Não
numa ação contra ato que ele pratique, decreto que emita, não. Isso
pode ser feito, não há reserva de foro. É de ação pessoal que se fala.
Qualquer grupo pode se organizar, por exemplo, para apresentar queixas
idênticas em diversos pontos do país, por malandragem.
Juízes, vejam, juízes.
Agora
pense o quanto é de holofotes e mídia para um delegado de
Cambirilândia, um promotor de Jassinuaba do Norte e um juiz de
Tranquilópolis do Sul com a oportunidade de decretar, sem pé nem cabeça,
uma busca e apreensão dentro do Planalto. Pois precisou de pé ou de
cabeça para a dona juíza lá de Paulínia para mandar invadir o
apartamento do filho do Lula (ou o meu, ou o seu) porque algum anônimo
denunciou um “movimento” que só poderia significar tráfico de drogas e
armas, simplesmente porque quis.
O privilégio de foro não é uma proteção ao homem – tanto que cessa quando deixa o cargo – mas à função.
Agora,
se o doutor Barroso fala sinceramente quando defende a extinção do foro
privilegiado, deveria dirigir suas baterias contra o artigo 102 que diz
que cabe privativamente ao STF julgar seus próprios Ministros.
Sim,
isto mesmo: até mesmo se um ministro tomar umas e outras e atropelar
alguém, vai ser julgado apenas por seus pares, pela sua “tchurma”, não
por outro poder, como membros do Executivo e do Legislativo.
E
como seu cargo é vitalício e o exercício, com a chamada “PEC da
Bengala”, vai até os 75 anos, é privilégio para a vida inteira.
Para
os outros é bom, não é, Dr. Barroso? Veja que beleza para um juiz de
comarca mandar prender o Presidente do Supremo. Ou, mais na moda,
coloca-lo sob “recolhimento domiciliar noturno”…
O
desvio do foro privilegiado é sua distorção política, que assistimos há
muitos anos, desde que o “mensalão tucano” foi para as calendas,
enquanto seguia o chamado mensalão petista.
O
ódio, a histeria e a simplificação barata costumam ser, em política e
em todas as coisas, os piores conselheiros. Fazem-nos apoiar
autoritarismos que, na aparência, são moralizadores mas que, legitimado,
logo se voltam contra as forças populares, como armas para destruir a
representação popular.
A
origem do privilégio de foro moderno, como temos aqui – e que separa
pessoa da função vem da Constituição Americana de 1787, só admitia
a função ou do cargo para determinar o foro de julgamento e não mais
os privilégios pessoais, em virtude da classe na qual provinham as
pessoas.
A
imunidade parlamentar moderna é ainda mais antiga, da Revolução
Gloriosa, que pôe fim ao absolutismo monárquico da Inglaterra e o Bill of Rights,
que estabelecia aos representantes eleitos a proteção de dois
princípios: a freedom of speach (liberdade da palavra) e a freedom from
arrest (imunidade à prisão arbitrária).
Seu
sentido é, portanto, absolutamente progressista e democrático,
retirando poder do Rei, até então o grande juiz, contra o qual nada se
podia.
Nada mais de “L’Etat c’est moi”, que o ministro Celso de Mello traduziu ontem polo “a Constituição é o que o Supremo diz que é”.
Vencer
uma eleição para presidente é possível, já o vimos. Vencer uma eleição
parlamentar, ainda que mais difícil, não é. Mas ter ao lado do povo um
poder judiciário, formado por – salvo exceções – uma elite mais capaz em
concursos que em princípios, sem espírito público e com apetites
insaciáveis de projeção e poder, cioso do bem-estar público e que dispõe
de um poder quase ilimitado, é virtualmente impossível.
Quem quiser saber o que significa deixar que os personagens dos poderes caiam às mãos de qualquer juiz, olhe para Sérgio Moro.
E olhem como a direita nem precisa se precaver, porque “não vem ao caso” e, se vier, desqualifica o juiz com o apoio da mídia.
Vão
entregar a democracia brasileira – ou o que resta dela – na mão de
transtornados, furiosos, descontrolados, Simãos Bacamarte que, ao
contrário do personagem machadiano, não conseguem afinal perceber que a
loucura está neles próprios.