Artigo escrito pelo jornalista Homero Fonseca:
Será que as investigações do escândalo da Petrobras
culminarão, se não com a erradicação, mas ao menos com um golpe mortal na
corrupção tupiniquim? Gostaria que assim o fosse, mas desconfio que não. Para
além da atuação do juiz Moro e da participação do Ministério Público nas
investigações, são bastantes claros e consistentes os indícios de que o alvo da
operação é acabar com a corrupção do PT . E os outros? O PT levou longe demais
sua realpolitik (os fins justificam os meios) e merece pagar por seus pecados.
Mas, ao contrário da leitura subliminar do noticiário, não foi o PT quem
inventou a roubalheira, na Petrobras e fora dela.
Não estou, de forma alguma, defendendo algo como
“se todos roubam, roubemos também!” Como cidadão, desejo a punição de todos os culpados
e a prevalência de uma ética republicana nos negócios públicos. Ocorre que o
vazamento seletivo de depoimentos (que deveriam estar na fase do sigilo) e o
tipo de cobertura dado pela grande imprensa (amplificando os depoimentos que
comprometem o PT e omitindo ou minimizando acusações contra a oposição) geraram
uma comoção na opinião pública (ou opinião publicada) alastrando um sentimento
pró-deposição da presidente eleita. Isto muito antes de as investigações terem
chegado a termo e o judiciário ter-se pronunciado. Como em 1954, contra Getúlio
Vargas, e 1964, contra Jango, a mídia já julgou e trata de convencer o público
do acerto do seu julgamento. Ou seja, todo o processo está contaminado de uma
evidente partidarização. Só os muito ingênuos e os movidos pela má fé a serviço
da sua ideologia acreditam (os primeiros) ou dão a entender acreditarem (os
segundos) que somente o PT e seus aliados descobriram na Petrobras uma
excepcional fonte de recursos manipulados ilicitamente para financiar campanhas
eleitorais e engrossar contas bancárias no exterior.
A corrupção no Brasil é estrutural (começa quando
qualquer um de nós, atento leitor, dá uma graninha para o guarda aliviar a
multa de trânsito e vai até os crimes de colarinho branco). E as campanhas
eleitorais são o terreno fértil onde ela opera e se potencializa em grau
máximo. A equação é a seguinte: as caríssimas e longas campanhas eleitorais
brasileiras são financiadas majoritariamente por grandes empresas, entre as
quais se destacam as empreiteiras de obras públicas. Essas grandes empresas não
doam milhões por beleza ou simpatia: fazem um “investimento” a ser cobrado
quando os candidatos financiados assumirem o poder. Pragmaticamente, as doações
são destinadas a TODOS os principais partidos políticos em atividade,
naturalmente em maior volume para quem estiver temporariamente no poder.
Existem preferências ideológicas, claro, mas na hora H o que interessa é a
possibilidade de “retorno”. E como se dá esse retorno? Através de
licitações viciadas envolvendo milhões e bilhões de reais, cujos vencedores são
sempre as empresas “doadoras”. Os contratos são superfaturados, porque é desse
lucro extra que as empreiteiras tiram o percentual a ser pago de propina a
políticos de todos os partidos que estejam no poder. Tudo isso vem de longa
data e é conhecido por qualquer pessoa bem informada. E não adianta
acusar todos os políticos de corruptos e pedir a volta da ditadura: as grandes
empreiteiras (Camargo Corrêa, Odebrecht, Queiroz Galvão, OAS, Andrade
Gutierrez) se formaram ou cresceram exponencialmente durante o regime militar
(como também aconteceu com a TV Globo, SBT, Editora Abril/Veja, Folha de S.
Paulo).
Reportagem do El País, com o título “Construtoras
investigadas despejaram 200 milhões de reais nas eleições 2014” e publicada na
página da edição brasileira do jornal espanhol na internet (21/11/2014),
informa que, no primeiro turno das eleições passadas, esse ervanário foi
distribuído sem preconceitos político-ideológicos, beneficiando governo (em
maior volume, como é a práxis) e oposição, cabendo às principais siglas os
seguintes valores: PT – 47,8 milhões de reais; PMDB – 38, 1 milhões de reais;
PSDB – 28,7 milhões de reais; PSB – 16,5 milhões de reais; DEM – 16,4 milhões
de reais e PP – 12,2 milhões de reais. Trocando em miúdos (ou graúdos): R$ 98,1
milhões para as forças governistas e R$ 61,6 milhões às hostes da oposição.
Já página do BOL – Brasil on Line (25/11/2014)
revelou que as empreiteiras investigadas na Operação Lava Jato da Polícia
Federal doaram quase R$ 98,8 milhões aos dois candidatos à Presidência que
chegaram ao segundo turno das eleições. A candidatura do PT (Dilma) recebeu R$
64, 6 milhões e a do PSDB (Aécio), R$ 34,1 milhões. “Ao todo, a campanha
de Dilma prestou contas que recebeu R$ 350.836.301,70, e o candidato do PSDB,
R$ 223.475.907,21”.
Essas contas estão no portal do TSE, mas não são facilmente
decodificadas por quem não é contador ou seja do ramo. As doações aparecem uma
a uma, misturadas com outras fontes de arrecadação, segundo os depósitos
bancários, sem uma consolidação final. Segundo o Bol, “para chegar ao cálculo,
a reportagem somou os valores doados diretamente na conta do candidato e
aquelas feitas ao comitê único financeiro, que também recebem
doações. Também considerou doações feitas em nome de empresas subsidiárias
das empreiteiras”.
As empresas respondem invariavelmente, quando
questionadas a respeito, que agiram “conforme a lei”. Lei, diga-se de passagem,
criada pelos beneficiados do sistema. Além disso, sabe-se da existência do
Caixa 2 (doações por baixo do pano, logo ilegais, e mais difíceis, embora não
impossível, de investigar).
Mas só se investiga o PT e a base aliada? Aos que
dirão, “as acusações foram específicas a eles, portanto as investigações devem
ser dirigidas a fatos reais e não hipóteses”, responda-se que surgiram por
todos os lados menções e denúncias sobre participação de gente ligada à
oposição e de fatos ocorridos antes da gestão petista. Só que essas denúncias
não mereceram a atenção devida: aqui acolá noticia-se algo, em seguida o
assunto é esquecido e ninguém se lembra de juntar as pedras do quebra-cabeça.
São veiculadas isoladamente e sem grande destaque na grande imprensa (afinal é
preciso parecer imparcial!).
Logo no início, um dos depoentes citou o nome do
falecido senador Sérgio Guerra, que teria recebido propina quando era
presidente do PSDB. Nunca mais se falou no assunto. O ex-gerente de Engenharia
da Petrobras, Pedro Barusco, em depoimento prestado à Polícia Federal no dia 21
de novembro de 2014, detalhou a participação do tesoureiro do PT, João Vaccari
Neto, na coleta de dinheiro para o partido. E acrescentou, en passant, ter
recebido propinas em troca da aprovação de contratos desde 1997 ou 1998, ou
seja, ainda durante o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Segundo ele, o
pagamento de propina era "uma iniciativa que surgiu de ambos os lados e se
tornou sistemática a partir do segundo contrato da FPSO (plataforma de
petróleo) firmado entre a SBM e a Petrobras no ano 2000". Vaccari foi
levado sob coerção à PF e rendeu manchetes e manchetes. Mas a corrupção
anterior foi esquecida.
Em outra notícia isolada, o portal Uol – ligado à
Folha de São Paulo – informa que, na campanha eleitoral de 2010, sete das dez
maiores empresas doadoras de campanha foram ou estão sob investigação devido a
indícios de corrupção envolvendo contratos públicos ou por conta dos seus
relacionamentos com partidos e políticos. O levantamento teve como base
dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e aponta que, juntas, aquelas
empresas doaram aproximadamente R$ 496 milhões para variados candidatos e
partidos governistas e oposicionistas, dos quais o PT recebeu R$ 72 milhões e o
PSBD, R$ 65,1 milhões. A mesma notícia traz declaração do secretário-geral e
fundador da ONG Contas Abertas, Gil Castelo Branco sobre a relação de
promiscuidade entre as doadoras, partidos e políticos: "Não é doação, é
investimento. Existem estudos que indicam que, de cada R$ 1 doado em campanha,
as empresas conseguem outros R$ 8,5 em contratos públicos".
Até a Veja (vejam só!) em sua página on line
(10/02/2015) deixou escapar a informação de que em seu depoimento, Augusto
Ribeiro de Mendonça Neto, sócio da empresa Toyo Setal, contou à Justiça Federal
do Paraná que os resultados de licitações de contratos da Petrobras começaram a
ser fraudados na década de 1990. Mas enfatiza as declarações do
delator-premiado segundo as quais a fraude nas licitações combinada por nove
empresas para dividir entre si os contratos não seriam do conhecimento do
comando da empresa (inocentes!) e somente se tornou efetiva no governo Lula.
Admitindo-se serem verdadeiras as declarações, nem por isso se deveria deixar
de investigar a gestão da estatal nos governos tucanos. Ou não?
Em comentário na BandNews FM (24/02/2015), o
jornalista Ricardo Boechat afirmou que é inegável a participação de integrantes
de partidos da oposição no esquema investigado pela Polícia Federal na
Petrobras. “Eu não tenho nenhuma dúvida de que há envolvidos da atual oposição
no esquema de corrupção da Petrobras. Ninguém tem dúvida. É claro que a
corrupção da Petrobras tem marcas que antecedem a era do PT”, ressaltou.
Boechat lembrou que, na década de 1980, ele próprio recebeu, com outros
colegas, o Prêmio Esso de Jornalismo por uma série de reportagens feitas no
jornal O Estado de S. Paulo sobre irregularidades cometidas na
estatal, nos anos 80.
Causou grande reboliço o artigo do empresário
Ricardo Semler, sócio da Semco Partners e ex-professor visitante da Harvard Law
School e de MBA no MIT – Instituto de Tecnologia de Massachusetts (EUA),
publicado na Folha de SP no dia 23 de novembro de 2014, sob o título: “Nunca se
roubou tão pouco”. Semler não é um petista infiltrado no empresariado, mas um
tucano com ficha de filiação assinada por Fernando Henrique, Serra, Montoro e
Covas. Em seu depoimento, afirma ele: “Nossa empresa deixou de vender
equipamentos para a Petrobras nos anos 70. Era impossível vender diretamente
sem propina.
Tentamos de novo nos anos 80, 90 e até
recentemente. Em 40 anos de persistentes tentativas, nada feito. Não há no
mundo dos negócios quem não saiba disso. Nem qualquer um dos 86 mil honrados
funcionários que nada ganham com a bandalheira da cúpula”. E acrescenta: “Os
porcentuais caíram, foi só isso que mudou. Até em Paris sabia-se dos cochons
des dix pour cent, os porquinhos que cobravam 10% por fora sobre a
totalidade de importação de barris de petróleo em décadas passadas.” Semler
aponta para esquemas semelhantes em tudo que é estatal, desde priscas eras, e revela
ter votado em Aécio, “pelo fim de um longo ciclo do PT, porque Dilma e o
partido dela enfiaram os pés pelas mãos em termos de postura, aceite do sistema
corrupto e políticas econômicas”.
Mas aplaude o fato de, pela primeira, altos executivos
de grandes empresas estarem atrás das grades e se diz otimista de que a
Operação Lava Jato signifique um novo ciclo da luta contra a corrupção no
Brasil.
O contundente artigo do empresário não sensibilizou
os agentes que investigam a roubalheira na Petrobras. Talvez porque, como
revelou a repórter Júlia Duailibi, no Estadão (13 novembro de 2014), delegados
da PF à frente da Lava Jato manifestaram-se inúmeras vezes, no Facebook,
durante a campanha eleitoral, atacando Dilma, Lula e o PT e exaltando Aécio
Neves. A matéria dá nome aos bois: Igor Romário de Paula (que participa de um
grupo no FB intitulado Organização de Combate à Corrupção, cujo símbolo é uma
caricatura de Dilma e uma faixa vermelha: Fora, PT!” Herdeiro da guerra fria, o
delegado Igor proclama que “o comunismo e o socialismo são um grande mal que
ameaça a sociedade”). Outros policiais federais são Márcio Anselmo (que chamou
Lula de anta) e Maurício Grillo (compartilhou propaganda eleitoral do PSDB e
críticas a Lula e Dilma). Ou seja, imparcialidade zero (estranhamente o
ministro da Justiça, a quem a PF é subordinada, não determinou o afastamento
dos delegados da investigação, precedido por sindicância que confirmasse os
fatos).
Resumindo: há um inegável direcionamento partidário
no nível de divulgação e talvez no próprio encaminhamento da Operação Lava
Jato. Os fatos e o noticiário induzem a uma demonização do atual governo e seu
partido, inculcando em certa parcela da população ao PT o monopólio da corrupção
ou, ao menos, a sua elevação a níveis estratosféricos (o que não é comprovado
por qualquer quantificação consistente). A corrupção, estrutural em nossa
sociedade, não foi inventada pelo PT, embora seja lamentável a conivência e o
envolvimento do partido nas falcatruas. A Operação Lava Jato e a CPI no
Congresso têm uma chance de ouro de golpear fatalmente o bacilo da corrupção em
nosso organismo político. Infelizmente, não parecem trilhar esse caminho, pelo
menos até agora e segundo o noticiário da grande imprensa.
Mas se todo o
esforço for direcionado somente para atingir “a corrupção do PT” mantendo
incólume a estrutura e a cultura da corrupção, deixando assim o caminho
livre para “os outros corruptos”, então será necessária uma investigação sobre a
investigação da Operação Lava Jato. Nos anos 1960, o saudoso Stanislaw Ponte
Preta galhofava: “Restaure-se a moralidade ou nos locupletemos todos”. Hoje, a
dimensão do escândalo é grande demais para permitir tiradas desse tipo. Vivemos
um momento decisivo em que é preciso ter clareza dos objetivos: tirar do poder
um partido ou acabar pra valer com a corrupção geral que assola o país?