Artigo escrito por Paulo Moreira Leite e publicado originalmente no portal 247
Determinados acontecimentos históricos tem uma reconhecida capacidade de iludir seus contemporâneos.
O mais recente envolve a multa de R$
4,47 bilhões que o Ministério Público pretende aplicar contra seis
empresas envolvidas na Operação Lava Jato. O MP também pretende impedir
que participem de licitações, que recebam benefícios fiscais e juros
subsidiados em seus investimentos.
Diante da estatura dessas empresas, entre as maiores do país, estamos falando de propostas que extrapolam o universo jurídico.
São medidas que, se forem aceitas
pela Justiça, envolvem um caso de terrorismo, que consiste em manipular
fatos econômicos para se obter objetivos políticos, gerando efeitos que
vão muito além dos cidadãos acusados, prejudicando os trabalhadores e
suas famílias, afetando ainda o nível de emprego e o desenvolvimento do
país.
O absurdo reside aqui. Não bastassem
as delações premiadas, as prisões prolongadas para forçar confissões, o
cerco criminal ao ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, agora se
tenta atingir o pão e a tranquilidade dos brasileiros.
Surpresa? Nem tanto.
Quem não esqueceu que a operação
Mãos Limpas italiana é o roteiro de trabalho da Lava Jato, como o juiz
Sérgio Moro admitiu em artigo escrito em 2004, só precisa ter clareza
sobre um aspecto. Além de procurar, assumidamente, a “deslegitimação” do
sistema político — o que também se busca no Brasil — a Mãos Limpas
inaugurou um período de empobrecimento e recessão na economia.
Foi assim que destruiu um sistema
que garantiu o mais prolongado regime democrático da Italia ao longo de
sua história republicana, colocando em seu lugar um condomínio de
partidos e lideranças frágeis e dóceis, ideais para serem alvo das
maiores economias da União Européia e dos Estados Unidos.
O saldo econômico da Mãos Limpas é
uma tragédia. Como informa a Economist na edição de 31 de janeiro de
2015, o desempenho da Italia nos anos posteriores à Mãos Limpas foi pior
até que o da Grécia, aquela que enfrentou uma recessão de 25% em cinco
anos, no mesmo período: “em valores constantes, a economia italiana
afundou nos primeiros 14 anos do século (mesmo o PIB da Grécia é maior
hoje do que era em 1999). ”
No Brasil de 2015, a multa de R$
4,47 bilhões pode abrir processo destrutivo de longa duração e
consequências nocivas para o conjunto do país.
Parece difícil enxergar isso agora mas esse tipo de adormecimento das consciências é mais frequente do que se imagina.
Deposto em 1 de abril de 1964, João
Goulart deixou o país convencido de que logo voltaria à presidência. Já
uma parcela respeitável de seus adversários, na base social do golpe
militar, tinha certeza de que a ditadura estava programada para durar um
ano. Foram vinte anos.
A leitura de outros relatos históricos mostra que esta dificuldade está longe de ser uma peculiaridade brasileira.
Na maior parte da Segunda Guerra
Mundial, o Partido Comunista Frances desempenhou um papel reconhecido na
resistência ao nazismo. Nem sempre foi assim, porém.
Lembrando os primeiros anos de
ocupação da França pelas tropas nazistas, quando Stalin e Hitler tinham
assinado um pacto de não agressão, o dirigente comunista Adam Rayski
registra uma constrangedora convivência do PCF com os nazistas.
Em “Nos ilusions perdues”, Rayski
recorda documentos que pregavam: “Abaixo o capitalismo ariano e judeu”.
No jornal do partido, então publicado com outro nome, também se pedia
pela expropriação “de grandes capitalistas judeus”, num comportamento
que leva Rayksi a se perguntar se essa visão era simples expressão da
visão de mundo de determinados jornalistas do partido ou se traduzia um
esforço “de acomodação entre comunistas e nazistas.”
Você já sabe que nas ultimas
semanas, no Rio Grande do Sul, 7 000 empregos ligados a Petrobras já
foram eliminados, em empresas que acusam um rombo de R$ 5 bilhões nos
pagamentos a receber. Este é o sinal de alerta para a judicialização da
economia.
Do total cobrado pelo Ministério
Público, a maior parcela — R$ 3,1 bilhões — encontra-se na categoria
sempre subjetiva dos “danos morais,” envolvendo dez vezes o valor
estimado das propinas, o que não é comum.
Repetindo um mantra que os
brasileiros ouviram até enjoar durante a AP 470, os procuradores da Lava
Jato falam em “punição exemplar”. Exemplo de que mesmo?
Pedindo auxílio a metáforas da
medicina, que envolvem uma realidade que nada tem a ver com o
funcionamento da Justiça e muito menos com a política, fala-se ainda em
“câncer”, em “metástase.”
O que se busca é esconder medidas
jurídicas que colocam em risco o emprego dos brasileiros, seu salário, o
futuro de suas famílias.
Para começar, falta provar que todas
as denúncias contra essas empresas são verdadeiras e podem ser
demonstradas a partir de provas robustas. Quem sabe? Na página 36 da
denuncia contra a OAS, por exemplo, chamada a pagar uma multa de R$ 988
milhões pelo pagamento de propinas, admite-se singelamente que “as
transações bancárias até o momento não identificaram o montante de 1%
nos contratos firmados entre a construtora e a Petrobras.” Na página 8,
cita-se uma delação premiada, produto das circunstâncias que todos
conhecemos, que afirma que “todos sabiam” do pagamento de um
“porcentual” ao Partido dos Trabalhadores. Em outro cúmulo se precisão,
se diz: “o que se rezava dentro da companhia é que esse valor seria
integral para o PT.”
A questão política e jurídica, na verdade, é outra. Consiste em perguntar quem deve pagar a conta.
Teve razão a presidente Dilma
Rousseff ao lembrar, ontem, que o país estaria muito melhor se as
denuncias que envolvem a Petrobras tivessem sido investigadas há quase
20 anos, quando o gerente Pedro Barusco começou a montar um esquema na
empresa.
Errou Fernando Henrique Cardoso,
quando, horas depois, deu uma resposta torta: “como alguém serio pode
responsabilizar meu governo pela conduta imprópria individual de um
funcionário se nenhuma denúncia foi feita na época?”
Há exatamente 18 anos, durante o
primeiro mandato de FHC, o Brasil inteiro tomou conhecimento de uma
denúncia do jornalista Paulo Francis de que havia um esquema de propina
na Petrobras, pela qual diversos diretores mantinham contas de 50 e 60
milhões de dólares em contas secretas na Suíça. Francis repetiu a
denúncia mais de uma vez, pela TV.
Inconformada, a diretoria da
Petrobras decidiu acionar Francis na Justiça, numa ação por danos morais
no valor de US$ 100 milhões. Estimulado por José Serra, o presidente
tentou convencer os executivos da empresa a desistir da ação. Protegeu
um amigo do governo mas não demonstrou a mesma atenção pela Petrobras.
Se tivesse mandado investigar o
caso, como era dever de um presidente, poderia — eu disse poderia — ter
descoberto um universo paralelo que seria denunciado quase duas décadas
depois.
Meu palpite — mas é só um palpite — é
que não se pretendia fazer nenhum movimento que gerasse ruído em torno
de um projeto maior, de privatizar a maior empresa brasileira. Um ano
depois da denuncia de Francis, FHC assinou decreto que permitia que a
Petrobras fosse dispensada de licitações para definir seus
investimentos. Curioso, não?
Em 1996, quando Paulo Francis fez a
denuncia, Ministério Público já havia conquistado a autonomia de
investigação garantida pela Constituição de 1988. Fez alguma coisa? E a
Polícia Federal?
Aprende-se, mais uma vez, uma boa e
velha lição: a primeira medida para se impor medidas que prejudicam o
conjunto da população e comprometem o destino do país é apagar sua
memória. Deu para entender, certo?