Trecho da ferrovia em Goiás, que está pronto, mas sem funcionar por causa de detalhes finais da obra
Janio de Freitas – Folha de S.Paulo
O primeiro telefonema veio bastante cedo. Fiquei confuso com o que ouvi: "Janio, é Delfim Netto. Você não imagina a tempestade que está aqui em Brasília". Tempestade? O que acontece? "É uma chuva de telefonemas, com a tua reportagem na Folha". Rimos ao mesmo tempo.
Logo se restabeleceu a manhã de meu trabalho normal, jornais, anotações, lista dos contatos a procurar. No almoço com velho amigo, em seu escritório, conversamos por umas duas horas, mas só na despedida veio uma referência, rápida: "O que você fez hoje vai dar problema. Eles têm que fazer alguma coisa".
Ao chegar à sucursal carioca da Folha e receber da telefonista quase um bloco de recados telefônicos, ainda no começo da tarde, percebi o tamanho da repercussão, impressentida, pela revelação da fraude na concorrência da Norte-Sul. Além do hábito de me desligar de um artigo ao encerrá-lo, e me inquietar já com os seguintes, o próprio jornal não vira valor no seu "furo" para ser manchete.
(Ganhei alegres jantares, quando vinham referências àquela "sua manchete da Norte-Sul", esclarecia que manchete não foi e, diante da descrença, propunha na gozação a aposta de um jantar).
O que chamou minha atenção para a Norte-Sul foi o silêncio. A obra gigantesca, o custo apenas inicial de mais de US$ 2 bilhões, e nenhuma promoção do governo, a respeito, nenhuma discussão, raras e insignificantes menções na imprensa, nada na TV –o que era isso, afinal?
As investidas na área dos transportes, inclusive no governo, não resultaram. O assunto estava fechado. Talvez um artigo sobre a ferrovia me abrisse boas informações.
E assim foi. Está indicado aí, portanto, o mérito que os bons informantes têm nos assuntos jornalísticos que os põem, por ferir interesses fortes, sob alguma forma de risco. Esse mérito, creio, é maior mesmo que o dos jornalistas, que são profissionais, podem ter algum amparo legal e aparecem como os merecedores únicos do reconhecimento, em injustiça incontornável com os informantes guardados sob anonimato, contra represálias materiais e morais.
A publicação antecipada do resultado da concorrência valiosa e, sobretudo, o uso de um anúncio classificado para comprová-la foram assunto jornalístico internacional.
A reportagem é uma das 47 que integram o livro "Global Muckraking" -"100 anos de jornalismo investigativo no mundo" (ed. The New Press, 2014), organizado por Anya Schiffrin, diretora do "programa sobre mídia e comunicação" na Universidade Columbia". No Brasil, porém, criou até situações grotescas.
A TV Globo, por exemplo, não incluíra a farsa da concorrência nos temas previstos para o "Jornal Nacional", apesar de ser o assunto do dia.
No final da tarde, chega lá o telefonema em que Roberto Marinho, de manhãzinha no Japão, ouve as novidades brasileiras e dá sua orientação. Diretor de jornalismo, Armando Nogueira informa-o da concorrência e da decisão de não a incluir no noticiário. A Presidência lhe pedira que minimizasse o assunto. Recebe, para sua surpresa, a orientação oposta.
Armando Nogueira não descumpre a ordem, mas não fica mal com a Presidência: ouve, para informar os espectadores, só o lado do governo.
"Veja" fez capa e minuciosa reportagem. Com uma novidade: me deu um sócio no trabalho. Não por culpa sua, mas de um entrevistado seu, a solução técnica de um anúncio classificado era atribuída a um secretário do jornal. Para eliminar mal-entendidos, diante do que outros publicavam, fiz o artigo "Foi só isso", repondo e relatando os pontos importantes e publicáveis do trabalho feito.
O governo não teve só as reações esperáveis, como negar irregularidade na licitação. Ministro dos Transportes, José Reinaldo Tavares pediu no mesmo dia um processo contra mim pela Lei de Segurança Nacional. Sua intenção levou-o a um atrito sério com o consultor-geral da República, Saulo Ramos, que se negou a adotar a providência, dando-lhe adjetivos maciços. E este argumento politicamente definitivo: seria criar um segundo e longo escândalo contra o governo.
Romeu Tuma, diretor da Polícia Federal, abriu um inquérito criminal contra mim, não contra os dirigentes da Valec, subsidiária da estatal Vale do Rio Doce que conduzira a concorrência em conjugação com o Ministério dos Transportes. A Procuradoria Geral da República designou um participante das investigações. No Congresso foi instalada uma CPI, e lá estive.
Tudo isso se juntou para levar ao final esperável: nada. Surpreendente foi como se deu o final do inquérito criminal. O texto que acompanhou a exibição do anúncio classificado, no qual se antecipavam os ganhadores dos 18 trechos da ferrovia, foi seco, direto, sem adjetivo ou qualquer consideração. Feito para enfrentar o crivo de provável processo.
Aos inquéritos restou apegar-se à palavra "fraude". Mas, para incriminar seu uso, seria preciso provar que a licitação não foi fraudulenta. E como fazê-lo contra a publicação antecipada e precisa do complexo resultado oficial?
O representante da Procuradoria Geral da República, com evidente predisposição em favor do governo (logo, também dos empreiteiros), não pôde concluir senão que era o caso de inquérito sobre a licitação.
ARQUIVAMENTO
Apesar disso, um ano e 12 dias depois da reportagem, a Folha publicou um artigo em que noticiei o arquivamento do inquérito, conforme despacho do procurador-geral Sepúlveda Pertence ao fim de manobras com outro procurador, Juarez Tavares. Sepúlveda Pertence ganhou cadeira no Supremo Tribunal Federal.
De minha parte, o mais desagradável ficou no trecho pouco movimentado, passadas as nove da noite, entre a redação e o estacionamento. Onde um tipo nervoso e armado abordou "seu Jaime", dias depois da reportagem e seus seguimentos, para a ameaça que não foi bem entendida porque mal falada. Adotar precauções também não foi agradável, nunca é.
A concorrência não se desdobrou em contratações. Ficou como se não houvesse existido. Quando o projeto foi retomado, seus dirigentes já eram outros.
Se o arquivamento feito pela Procuradoria Geral da República não houvesse existido, as relações entre as empreiteiras, o Estado e os cofres públicos ou semipúblicos seriam outras nos 30 anos desde a concorrência desmontada.
É incalculável a riqueza que, nessas três décadas, a educação, a saúde, a moradia, a segurança perderam para a corrupção movida por empreiteiras e similares. Mas é verdade o que Emilio Odebrecht há pouco disse por escrito: "Tudo isso acontecia nas barbas das elites, políticos, empresários, imprensa, entidades representativas"