Conjur -
O parecer do jurista Ives Gandra que aponta a possibilidade jurídica de
impeachment da presidente Dilma Rousseff está errado. É o que dizem
Lenio Streck, ex-procurador de Justiça, professor e advogado; Marcelo
Cattoni, doutor em Direito e professor da UFMG; e Martonio Mont’Alverne
Barreto Lima, doutor em Direito e professor da Unifor-CE.
Em artigo enviado à revista eletrônica Consultor Jurídico, eles
apontam que a tese defendida por Gandra é inconstitucional, pois usa
elementos jurídicos para justificar uma decisão política. O artigo cita
ainda o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Moreira Alves,
segundo quem "um processo de impeachment não é o espaço onde tudo é
possível".
Leia o artigo:
O jurista Ives Gandra elaborou parecer, dado a público, sustentando
existirem elementos jurídicos para o impeachment da presidente Dilma
Rousseff. Diz o professor que “apesar dos aspectos jurídicos, a decisão
do impeachment é sempre política, pois cabe somente aos parlamentares
analisar a admissão e o mérito”. Diz, em síntese, que é possível o
impeachment porque haveria improbidade administrativa prevista no inciso
V, do artigo 85, da Constituição Federal: “o dolo nesse caso não é
necessário”. Mais: “Quando, na administração pública, o agente público
permite que toda a espécie de falcatruas sejam realizadas sob sua
supervisão ou falta de supervisão, caracteriza-se a atuação negligente e
a improbidade administrativa por culpa. Quem é pago pelo cidadão para
bem gerir a coisa pública e permite seja dilapidada por atos criminosos,
é claramente negligente e deve responder por esses atos”.
Para resumir ainda mais, Ives Gandra quis dizer que comete o crime de
improbidade por omissão quem se omite em conhecer o que está ocorrendo
com seus subordinados, permitindo que haja desvios de recursos da
sociedade para fins ilícitos. Simples assim.
É o relatório, poderíamos assim dizer, fosse uma sentença.
Preliminarmente, é necessário deixar claro que falar sobre
impeachment de um(a) presidente da República de um país de 200 milhões
de habitantes não é um ato de torcida. Ou se faz um parecer técnico,
suspendendo os seus pré-juízos (Vor-urteil) ou se elabora uma opinião
comprometida ideologicamente. Mas daí tem de assumir que não é técnico. O
que não dá para fazer é misturar as duas coisas: sob a aparência da
tecnicidade, um parecer comprometido. Vários leitores da ConJur
detectaram bem esse problema no parecer do ilustre professor paulista.
De todo modo, vamos falar um pouco sobre isso. Afinal, existe
literatura jurídica (doutrina e jurisprudência) que confortam facilmente
uma tese contrária à do parecerista.
Já de saída, ao dizer que há argumentos jurídicos para sustentar uma
tese política, Gandra mistura alhos com bugalhos. No caso, Gandra usa a
política como elemento predador do direito. Aliás, o Direito tem de se
cuidar dos inúmeros predadores exógenos e endógenos. Os principais
predadores exógenos são: a política, a moral e a economia. O direito não
pode ser reduzido, sem as devidas mediações institucionais a um mero
instrumento à disposição da política. Além disso, há um sério problema
de teoria da constituição no argumento do parecerista. Ele talvez
compreenda mal o papel da Constituição democrática. Pois se de um ponto
de vista sistêmico a Constituição é um acoplamento estrutural entre
direito e política, isso pressupõe, por um lado, uma diferenciação
funcional entre direito e política e, por outro, prestações entre ambos
os sistemas, de tal forma que o direito legitime a política e esta
garanta efetividade ao direito. Assim, a Constituição é parâmetro de
validade para o direito e de legitimidade para a política.
Para além de um ponto de vista sistêmico ou funcionalista, do ponto
de vista da teoria da ação a Constituição é a expressão, no tempo, de um
compromisso entre as forças políticos sociais, não resta dúvida. Mas
todo compromisso, enquanto promessa mútua, possui um sentido
performativo de caráter ilocucionario ou normativo: a Constituição
constitui; ou seja, é a expressão da auto constituição democrática de um
povo de cidadãos que se reconhecem como livres e iguais.
O que, em outras palavras, significa que a Constituição é uma
mediação, no tempo, entre Direito e política. Falar em elementos
jurídicos que justificam uma decisão política, nos termos do argumento
de Gandra, pressupõe o argumento autoritário de um direito como
instrumento da política. Esse é o busílis do equívoco do professor.
Assim, ao invés de mediação, o que ocorre é um curto-circuito entre
Direito e política no plano constitucional, chame-se isso de colonização
do Direito pela política, corrupção do código do Direito pela política,
ação predatória da política no Direito, ilegitimidade política ou,
simplesmente, defesa de uma tese inconstitucional!!
O curto-circuito detectado pelos leitores da ConJur
Onde está o curto-circuito no argumento do professor Gandra? Observemos como nem é necessário lançar mão de grandes compêndios sobre a matéria. Vários leitores da ConJur mataram a charada. O comentarista G. Santos (serventuário) escreveu: “O Professor mistura lei de improbidade com lei de crimes de responsabilidade. Lança mão do vago art. 9º, 3, da Lei 1079/50 para justificar seu parecer de que se admite crime de responsabilidade culposo, e, pior, chega a afirmar que o art. 85, V da CF seria auto-aplicável! Só que o parágrafo único do mesmo artigo é expresso ao prescrever que "Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento".
Onde está o curto-circuito no argumento do professor Gandra? Observemos como nem é necessário lançar mão de grandes compêndios sobre a matéria. Vários leitores da ConJur mataram a charada. O comentarista G. Santos (serventuário) escreveu: “O Professor mistura lei de improbidade com lei de crimes de responsabilidade. Lança mão do vago art. 9º, 3, da Lei 1079/50 para justificar seu parecer de que se admite crime de responsabilidade culposo, e, pior, chega a afirmar que o art. 85, V da CF seria auto-aplicável! Só que o parágrafo único do mesmo artigo é expresso ao prescrever que "Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento".
E complementa o nosso leitor conjurista: “A parte final do parecer é
assustadora. Quando o Professor vai ‘aos fatos’, não consegue disfarçar
sua parcialidade, concluindo que está caracterizado crime de
responsabilidade culposo, e fundamenta no art. 11 da Lei de Improbidade!
Cria um tertium genus com o uso indiscriminado da Lei 1.079 com a lei 8429, sem sequer mencionar os entendimentos do STF e do STJ sobre o tema”. Bingo, G.Santos.
Cria um tertium genus com o uso indiscriminado da Lei 1.079 com a lei 8429, sem sequer mencionar os entendimentos do STF e do STJ sobre o tema”. Bingo, G.Santos.
Já o comentarista Jjsilva4 (Outros), diz: “Com a devida vênia, os
crimes de responsabilidade, de nítida natureza penal, não se presumem
culposos, como qualquer outro (art. 18, parágrafo único do CP), não se
podendo inferir negligência imprudência ou imperícia como pressupostos
da improbidade prevista no art. 4, V da Lei 1.079/50, sob pena de grave
afronta a toda teoria geral de direito penal elementar, que se aprende
no segundo ano da faculdade.
Da mesma forma, não dá para querer interpretar o art. 85 da CF a partir da Lei 8.429/92, que é lei derivada da Constituição, mas apenas o contrário, o que não leva a conclusão alguma a respeito do cometimento de crime. Concluo que há no douto parecer forte carga ideológica que acaba por sacrificar a técnica jurídica. Não sei se prevalecerá, se persuadirá os políticos e a comunidade jurídica em geral. A conferir.” Bingo, JSilva.
Da mesma forma, não dá para querer interpretar o art. 85 da CF a partir da Lei 8.429/92, que é lei derivada da Constituição, mas apenas o contrário, o que não leva a conclusão alguma a respeito do cometimento de crime. Concluo que há no douto parecer forte carga ideológica que acaba por sacrificar a técnica jurídica. Não sei se prevalecerá, se persuadirá os políticos e a comunidade jurídica em geral. A conferir.” Bingo, JSilva.
Finalmente, o comentarista Hélder Braulino, com jurisprudência do
Superior Tribunal de Justiça, mostra que somente os tipos do artigo 10
admitem civilmente a forma culposa. O crime culposo exige previsão na
lei e não pode ser implícito. A omissão da Lei 1.079/50 vem seguida do
advérbio "dolosamente" e a não responsabilização dos subordinados se dá
"de forma manifesta (artigo 9º, incisos 1 e 3). O que se diz por
"manifesto" é incompatível com qualquer das modalidades da culpa
(imperícia, negligência ou imprudência). A governanta não os pune mesmo
quando atuam de forma "manifesta". O que vem a significar "forma
manifesta" afasta a figura culposa. O leitor Hélder encerra mostrando
que a omissão mencionada na Lei de Improbidade é, mesmo, dolosa.
Portanto, só com os argumentos dos leitores da ConJur já é suficiente
contestar o parecer do ilustre professor. Por isso, este artigo é uma
pequena homenagem aos leitores, para mostrar como uma tese desse jaez
“bate” na comunidade jurídica. Bate e rebate. Os leitores já bem
demonstraram isso. Parabéns aos comentaristas da ConJur, que dia a dia
se aprimoram.
De todo modo, numa palavra final, gostaríamos de trazer a lume o que
disse o ministro José Carlos Moreira Alves, quando do julgamento do MS
21.689-DF: um processo de impeachment não é o espaço onde tudo é
possível. Bingo, ministro Moreira Alves!
Podemos ser contra ou a favor da presidente. Podemos dela gostar ou
desgostar. Mas, na hora de discutirmos uma coisa importante como é o
impeachment, temos de colocar de lado os nossos pré-juízos, fazendo uma
epoché. Afinal, somos juristas para quê?
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