quarta-feira, 6 de junho de 2012

ARTIGO DE OPINIÃO : HÁ CRIMES PIORES, SIM


Há crimes piores, sim

Antonio Falcão

       Vindo de família bem-sucedida, um europeu ainda adolescente foi estudar num seminário religioso. E, uma vez ordenado, pediu aos superiores pra servir a Cristo numa comunidade miserável da América Latina. Essa opção foi igualmente aceita pelos seus ricos familiares e para estas bandas ele veio se solidarizar com os mais carentes.
       Aqui, o rapaz se enturmou com os favelados e com eles, atrás da igreja, construiu para si um quartinho com privada e banheiro. Enquanto isso, inteirou-se das necessidades comunitárias. E no decorrer da obra social soube que muitos se drogavam, como Lola e Raúl, pais de Juan, de 12 anos. Nos cultos, esse guri coletava esmola dos fiéis. Mas, aos poucos, o religioso descobriu que ele desviava a metade dos donativos para comprar maconha. Então, foi ao casebre do moleque falar sobre isso com Lola. Esta, sem rodeio, disse-lhe que não ia coibir nada, pois ela e Raúl também davam uns tapas na erva. E que só não permitia Juan cheirar cocaína por duas razões: o custo da droga e a tenra idade do garoto. “Apenas por isso”, expôs cinicamente a mãe.
       Porém, dias adiante, Raúl liderou o saque a um supermercado próximo da favela. E, à noite, foi com Lola e Juan pedir ao religioso que os homiziasse. Ainda justificou a escolha do quarto do europeu: “Ninguém vai pensar que estamos nos fundos duma igreja.” Assim, ficaram uma semana, até fugirem para outra cidade. Após esse episódio, por dever de consciência cristã, o religioso confessou a um colega da igreja que escondera a família. Só que o outro viu isso como hediondo. E o europeu ponderou: “Nesta faminta América Latina, meu caro irmão em Cristo, há crimes piores, sim. Veja a roubalheira de governantes, parlamentares e, até – pasme –, juízes. Eles se apropriam do dinheiro público e, que se saiba, continuam impunes. Diante disso, eu lhe juro pela minha crença em Deus, saquear supermercado é, por si, atenuante. E, para mim, esse delito não significa nada.”
       Mas significou: com a deduragem do colega, os superiores o fizeram voltar pra Europa. E no Velho Mundo vai envelhecer.

PS: Meus cumprimentos aos integrantes da pernambucana Comissão da Verdade. E com um abraço em Socorro, Humberto e Franca.



Antonio Falcão é escritor.

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