Justiça e Direito são coisas diferentes, segundo Hans Kelsen.
Eu venho mencionando Kelsen,
clássico da literatura jurídica, sobretudo por sua Teoria Pura do
Direito, mas também conhecido por seus ensaios sobre democracia, com
alguma frequência, porque a gente precisa dançar conforme a música.
Desde que as conspirações
midiático-judiciais se iniciaram, com muita força, a partir de 2005,
durante o escândalo do mensalão, o Direito vem assumindo,
maliciosamente, o lugar da política.
Então precisamos todos nos tornar juristas.
Afinal, a judicialização da política
é uma jogada esperta das elites do dinheiro, e repete o sucesso obtido
no campo da economia, até hoje um feudo de economistas e seus jargões
acadêmicos.
Há muito tempo a imprensa brasileira
trata as questões econômicas como um campo do conhecimento acessível
apenas aos iniciados, de preferência formados em universidades
americanas.
E agora, com a judicialização da
política, a mesma elite transforma a democracia numa rixa de advogados,
asfixiando e elitizando o debate de ideias.
Em economia, somos assaltados, há décadas, por juros altos cuja única justificação são argumentos bizantinos e incompreensíveis.
Poucos tem a coragem de afirmar uma
verdade: que os técnicos do Banco Central não passam de atores bem
pagos, que desempenham um papel para a mídia.
Nossas próprias lideranças de
esquerda parecem olhar para os medalhões da economia e suas teorias como
índios contemplando, basbaques, espelhinhos oferecidos pelos
portugueses.
A mesma coisa se dá no campo do Direito.
As conspirações golpistas que
tentaram transformar o mensalão num golpe jurídico foram vencidas (em
parte, ao menos) pela política, em 2006, em 2010. Mas elas aprenderam
com essas derrotas e reapareceram, em 2014, com estratégias bem mais
sofisticadas.
O golpe jurídico se dá porque há
dois tipos de lei. Há a lei presente na constituição, que é estática, um
princípio, uma doutrina. E há a lei criada pelos operadores do direito,
juízes, procuradores, policiais, que não apenas usam a norma jurídica
para combater o crime: eles criam normas.
A lei, quando se converte em norma
aplicada pelo operador de direito, é diferente daquela presente na
Constituição, porque vem acrescida de uma interpretação que a transforma
completamente.
Esse é um vício por enquanto
insolúvel dos regimes democráticos. Eles tentaram fixar as leis no
papel, em constituições tratadas como textos quase divinos, para fugir
do arbítrio de priscas e violentas eras, nas quais a lei se confundia
com a vontade de tiranos e seus vassalos. De fato, a situação melhorou
quando as leis se fixaram.
Mas o mesmo problema permanece:
aqueles que detêm o monopólio de interpretar as leis se tornam castas
jurídicas dotadas de um poder terrivelmente arbitrário e
antidemocrático.
Os parlamentares fazem e desfazem
leis e, com isso, detêm um grande poder. Tanto poder que a doutrina
democrática lhes impôs limitações severas: exercem mandatos temporários,
em média de 4 anos, e devem ser eleitos pelo voto direto.
Juízes, procuradores, delegados,
todavia, não sofrem nenhuma restrição de poder. Podem até se unir, numa
"força-tarefa", para que este poder se torne absoluto: o delegado entra
com as armas, o procurador entra com teorias mirabolantes, o juiz manda
prender quem ele desejar, quando ele desejar, sem precisar sequer
apresentar um motivo plausível.
Esses operadores do direito, com
ajuda da mídia, iludem a opinião pública: eles vendem a ideia de que
estão aplicando a lei, quando tão somente eles criam uma nova lei, uma
lei de exceção que só vale para o objetivo que eles pretendem atingir.
A excepcionalidade desta lei de ocasião a torna extremamente perigosa, desestabilizadora, terrível.
À sua sombra, não há democracia, não há prosperidade, não há justiça, não há paz. Ela não permite a vida.
Daí o caos jurídico, econômico, administrativo e político em que vivemos, no qual uns podem tudo e outros não podem nada.
Esses operadores do Direito são,
essencialmente, adversários do povo, assim como as constituições,
enquanto doutrina escrita, são as melhores amigas do povo.
Daí podemos dizer que os maiores
adversários da lei, ironicamente, são os próprios juízes, porque são
eles que a transformam, de um conjunto de normas criadas para promover
justiça e igualdade, em regras arbitrárias usadas para perpetuar a
injustiça e a desigualdade.
Eu pensei nisso ao me deparar com o ataque do ministro Teori Zavascki à defesa do presidente Lula.
A adesão do judiciário brasileiro ao golpe é sua face mais perversa, e a mais lógica.
O judiciário não é apenas o
principal reduto das castas burocráticas, tradicionais cães de guarda da
elite do dinheiro. É também o maior inimigo da lei, porque a perverte
ao mesmo tempo em que posa de seu guardião!
Como assim Zavascki, ministro do
Supremo, depois das inúmeras flagrantes ilegalidades cometidas por
Sergio Moro, pela Lava Jato, pela mídia, além do golpe do impeachment,
tem a cara de pau de falar que o presidente Lula está tentando
"embaraçar apurações"?
Ora, o presidente Lula é a face mais
vulnerável de todo esse imbróglio. Ele está virtualmente sozinho contra
o Estado, a mídia e a opinião pública.
Lula não é mais presidente, nem
servidor público, é notório que não exerce mais qualquer influência (a
bem da verdade, não exercia nem quando era presidente) nos meios
judiciais. Como pode embaraçar apurações apenas procurando se defender,
como é direito de todo cidadão numa democracia?
Criminalizar o exercício sagrado de defesa é a degradação suprema a que a atmosfera golpista nos levou!
O golpe nos roubou as duas únicas
liberdades políticas que tínhamos: o direito de escolher o governante e
as garantias individuais contra os arbítrios do Estado.
Além disso, a que espécie de
apuração Zavascki se refere? Apurações sobre um triplex que não é dele,
sobre um sítio que não é dele, sobre pedalinhos de lata? Ou sobre a
última palhaçada da Lava Jato: a suspeita de que a empregada doméstica
roubou os aneis da patroa (a história dos presentes)?
O Direito, enquanto descansa olímpico, estático, no texto da lei, é uma coisa bela.
Quando ele se afasta do princípio e
se converte em norma jurídica aplicada, ele se torna, porém, joguete em
mãos de magistrados do Ancien Regime, de velhos patrícios
romanos, dos eternos "donos" da lei. Ou seja, converte-se exatamente no
contrário da justiça: numa ferramenta de opressão.
Entretanto, para isso também serve o
golpe, para nos libertar do judiciário, dos procuradores, da polícia,
tão mais expostos ao pior tipo de corrupção, mãe de todas as corrupções,
o autoritarismo, quanto mais afastados do povo e de seus interesses.
A democracia é um regime onde o poder emana do povo, não dos operadores da lei.
O golpe nos obriga a voltar à origem
popular das leis, a seus fundamentos profundos, ao conceito de lei
enquanto norma voltada à justiça social e não arma dos poderosos - uma
justiça que floresce não nos gabinetes ar-condicionados de gordos e
vaidosos desembargadores e ministros das cortes superiores, mas nas
manifestações populares, nas campanhas eleitorais, nos debates
ideológicos e políticos que ocorrem nas redes sociais, nos blogs, e
demais periferias da comunicação de massa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário