Artigo de Paulo Moreira Leite
Sem
votos para impedir uma provável vitória do governo na proposta de
eliminar o superávit primário nas contas de 2014, a oposição produziu
ontem uma cena preocupante do ponto de vista da democracia.
Mobilizando arruaceiros profissionais e voluntários da baderna,
engajados numa dessas ONGs cujo nome parece inspirado em entidades de
exilados cubanos da Flórida, parlamentares oposicionistas criaram um
ambiente de violência e tumulto nas galerias do Congresso. No final de
uma jornada de tensão, conflito e violência, conseguiram impedir que a
maioria dos parlamentares presentes cumprissem seu dever constitucional
mais elementar: votar, soberanamente, com os votos recebidos do
eleitorado, na proposta que julgassem melhor.
Os brasileiros não têm boa memória daqueles momentos em que deputados
e senadores foram impedidos cumprir suas obrigações. Na maioria das
vezes, foram cenas que antecederam golpes de Estado.
A diferença é que isso costumava ocorrer com a presença intimidadora
de soldados pelo Congresso e arredores, numa paisagem ilustrada por
tanques e baionetas. Ontem, a coreografia era outra. Lembrava os
clássicos assaltos ao poder, de origem fascista, com vocação para atacar
instituições democráticas.
O ataque partiu de civis, “presumivelmente assalariados”, nas
palavras de Renan Calheiros, presidente do Senado. Conforme Renan, um
grupo de 26 pessoas “instrumentalizadas, provocando o Congresso,”
impediu os deputados de tomar uma decisão que, conforme cálculo da quase
unanimidade dos observadores, seria favorável ao governo.
A baderna foi organizada como um espetáculo de circo amador. Como se o
fim do superávit primário fosse um tema tão popular como a taxa de
juros e o aumento da gasolina, cidadãos instalados nas galerias montaram
um coro de palavrões, vaias e xingamentos destinado a inviabilizar um
debate real entre parlamentares.
Quando Renan determinou que as galerias fossem esvaziadas — medida
banal em qualquer Congresso do planeta — os cidadãos que logo seriam
promovidos a “representantes da sociedade civil” pelos analistas meios
de comunicação resolveram ficar onde se encontravam.
No mesmo instante, quinze parlamentares da oposição correram em seu
socorro, formando uma espécie de piquete para impedir que fossem
removidos pela polícia legislativa. Equipados para poses fotográficas,
logo surgiram cidadãos com mordaças vermelhas com a sigla do PT. Tudo
ensaiado e dramatizado.
Presente a casa poucos dias depois de ter afirmado que perdeu a
eleição para uma “organização criminosa”, Aécio Neves saiu em defesa da
baderna. Disse, conforme relato da Folha de S. Paulo: “A população
brasileira acordou. As pessoas estão participando do que está
acontecendo no Brasil. E algumas querem vir [ao Congresso]. Nós vamos
fechar as galerias?”
Com essa postura, o candidato presidencial do PSDB dá um novo passo
para se afastar das instituições democráticas. O primeiro foi a
tentativa de criminalizar — diretamente — a vitória de Dilma em 26 de
outubro. O segundo foi brindar uma iniciativa que em nada contribui para
um debate civilizado sobre as necessidades.
“Eu não estou reconhecendo o Aécio,” disse o governador do Ceará, Cid
Gomes, em entrevista ao Espaço Público, ontem, na TV Brasil.
Vários personagens e várias cenas se tornaram irreconhecíveis nos últimos dias.
Da mesma forma que o governo tem o direito de tentar suprimir o
superávit primário, a oposição tem o direito de tentar o contrário. Faz
parte da democracia. Cenas semelhantes ocorrem periodicamente nos
Estados Unidos, sempre que a Casa Branca ameaça ultrapassar seu limite
de endividamento.
Não faz parte da democracia, porém, tentar impedir o Congresso de
funcionar. Quem age dessa forma pratica o mandamento número 1 de toda
intervenção antidemocrática, que consiste em respeitar as regras e leis
de um país apenas quando lhe convém. Isso só interessa a quem planeja
impedir o funcionamento do regime democrático.
Este é o aspecto preocupante da baderna de ontem.
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