domingo, 14 de outubro de 2018

O delegado que viu paz e amor na suástica

O delegado viu paz e amor na suástica
Em Porto Alegre, jovem que vestia camiseta com o slogan #EleNão foi marcada na barriga
Foto: imagens google Notícias/News
O Globo - Por Elio Gaspari


Uma jovem de 19 anos contou na terça-feira à polícia de Porto Alegre que na noite anterior vestia uma camiseta com o slogan “#EleNão”, desceu de um ônibus e foi agredida por três pessoas. Contou ainda que, imobilizada, fizeram-lhe seis talhos na barriga, marcando-a com uma suástica.
Ainda não se conhecem as circunstâncias do episódio e, na quinta-feira, a jovem, que não teve o nome revelado, desistiu da denúncia. A investigação prossegue. Um dia antes da desistência, o delegado Paulo César Jardim, tendo visto uma fotografia dos ferimentos, deu uma entrevista aos repórteres Kelly Matos e Pedro Quintana com suas observações preliminares.
Ele repetiu seis vezes que ali não havia uma suástica. Informando que é um “especialista nesta área”, revelou que a cruz gamada do nazismo não tem aquele formato, pois a perna do “S” estava invertida. Segundo Jardim, “o que temos é um símbolo milenar religioso budista, símbolo de amor, paz e harmonia”. (A fotografia está na rede, bem como os 16 minutos do áudio da entrevista.)
Quando lhe perguntaram qual o sentido de uma pessoa marcar a canivete um “símbolo de amor, paz e harmonia” ele respondeu o seguinte: “Quem fez, foi, sei lá (...), Papai Noel, enfim, o que a gente tem é isto”. Categórico, acrescentou: “Não é uma suástica, isso eu afirmo com absoluta convicção”.
O delegado foi didático: “O movimento neonazista, quando ele iniciou, a partir de 1930, ele precisava ser representado por símbolo, um lado esotérico (...). O que é que aquelas pessoas que circundavam Hitler decidiram? Decidiram que buscariam um símbolo que trouxesse confusão e trouxesse harmonia para o povo alemão. Então, o que é que eles pegaram? Pegaram o símbolo budista de paz, amor e fraternidade e inverteram ele”.
Tudo errado. O nazismo (nada a ver com “neo”), bem como a suástica, surgiram em 1920 e ela não chegou à Alemanha pelo caminho da cultura indiana. Até sua apropriação pelo Partido Nacional Socialista, tinha vários significados, inclusive o de trazer sorte. Para Hitler, tratava-se de um símbolo do arianismo e da pureza racial.
Sejam quais forem as circunstâncias do episódio, quando aparece uma pessoa com uma suástica na barriga e um delegado como o doutor Jardim diz o que ele disse, algo de muito ruim está acontecendo.
Paris, 8 de junho de 1942
Hélène Berr tinha um diário. Tinha 21 anos, era judia e rica. Passava os dias na Sorbonne estudando literatura inglesa, tocava violino e estava apaixonada, de bem com a vida. Ela escreveu:
“Hoje é o primeiro dia em que me sinto num feriado. O tempo está glorioso e a chuva de ontem trouxe ar fresco. Os pássaros estão cantando. É também o primeiro dia em que vou usar a estrela amarela. Esses são os dois lados da vida de hoje: juventude, beleza e ar puro, tudo numa só linda manhã; a barbaridade e o mal, representados nesta estrela amarela.”
Enquanto Anne Frank escreveu seu diário no sótão de Amsterdam onde vivia escondida com a família, Hélène vivia o ocaso da paz dos judeus franceses. Deportada para a Alemanha, três meses antes da libertação de Paris, ela morreu em 1945 no campo de concentração de Bergen-Belsen, pouco antes da chegada das tropas inglesas.
Quem marcou a barriga da jovem gaúcha inverteu o traço da suástica, mas sabia o que estava fazendo.

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