Recebo do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, um dos artífices da política externa brasileira durante o Governo Lula, ao lado de Celso Amorim, um excelente texto do historiador alemão Volker Ullrich, publicado em 2017, sob o título Ruigh Abwarrten (Espere Calmamente), sobre os primeiros meses da ascensão de Adolph Hitler ao poder e ilusão de que as leis, a constituição e a sociedade barrariam sua loucura.
Como é longo, publico em três partes, com o link, ao final, para a continuação.
Espere Calmamente
Volker Ullrich, no jornal Die Zeit
Argumentaram que ele seria mais razoável uma vez no cargo e que seu gabinete iria domá-lo.
Um ditador? Fora de questão!
Como jornalistas, políticos, escritores e diplomatas tiveram responsabilidade na nomeação de Adolf Hitler para chanceler.
Há razão para se preocupar? “Não”, pensou Nikolaus Sieveking, funcionário do Arquivo de Economia Internacional de Hamburgo, Alemanha. “Acho que considerar a chancelaria de Hitler como um evento extraordinário é infantil o suficiente para deixar esse sensacionalismo para seus leais seguidores”, escreveu ele em seu diário em 30 de janeiro de 1933.
Assim como Sieveking, muitos alemães não reconheceram inicialmente essa data como um ponto de virada dramático. Poucos sentiram o que a nomeação de Hitler como chanceler realmente significava, e muitos reagiram ao acontecimento com uma indiferença chocante.
O chanceler do gabinete presidencial havia mudado duas vezes em 1932. Heinrich Brüningwas foi substituído no início de junho por Franz von Papen que, por sua vez, foi substituído no início de dezembro por Kurt von Schleicher. As pessoas quase se acostumaram com esse ritmo. Por que o governo de Hitler deveria ser algo mais do que apenas um episódio? Nos noticiários de Wochenschau [ cinejornal passado antes do início da projeção do filme. O equivalente alemão do antigo Canal 100 brasileiro] exibidos nos cinemas, a informação sobre a posse do novo gabinete foi a última, depois dos grandes eventos esportivos. Isso, apesar do fato de Hitler ter explicado claramente em “Mein Kampf” e em incontáveis discursos antes de 1933 o que queria fazer uma vez no poder: abolir o “sistema” democrático da Alemanha de Weimar, “erradicar” o marxismo (pelo que ele queria dizer social-democracia e comunismo) e “remover” os judeus da Alemanha. Quanto à política externa, não fazia segredo do fato de que queria revisar o Tratado de Versalhes e que seu objetivo de longo prazo era a conquista do “Lebensraum[espaço vital] no Oriente”.
A camarilha do presidente alemão Paul von Hindenburg, que o colocou no poder por meio de uma série de intrigas, concordou com os objetivos de Hitler de impedir o retorno à democracia parlamentar, cortar as correntes do Tratado de Versalhes, armar maciçamente os militares e ,mais uma vez, fazer da Alemanha o poder dominante na Europa. Quanto ao resto das intenções declaradas de Hitler, seus parceiros da coalizão conservadora estavam inclinados a descartá-las como mera retórica. Uma vez no poder, argumentavam, ele se tornaria mais razoável. Eles também acreditavam que haviam “enquadrado” Hitler de uma forma que permitiria que suas ambições pelo poder e a dinâmica de seu movimento fossem mantidas sob controle. “O que vocês querem?”, perguntou aos críticos o vice-chanceler Papen, o verdadeiro arquiteto da coalizão de 30 de janeiro. “Eu tenho a confiança de Hindenburg! Em dois meses, teremos empurrado Hitler para tão longe que ele vai gritar.”, assegurava Papen.
A sede de poder de Hitler não poderia ter sido mais subestimada. Os nove ministros conservadores do chamado “Gabinete de Concentração Nacional” claramente tinham mais peso do que os três Nacional-Socialistas. Mas Hitler também tratou de garantir que dois ministérios principais fossem preenchidos por seus homens: Wilhelm Frick assumiu o Ministério do Interior do Reich Alemão e Hermann Göring tornou-se ministro de gabinete sem pasta além de ministro do Interior da Prússia, adquirindo poder sobre a polícia no maior estado da Alemanha_ importante condição prévia para o estabelecimento da ditadura nazista.
O magnata da mídia e chefe do Partido do Povo Nacional da Alemanha, Alfred Hugenberg, foi visto como o homem forte no gabinete. Ele recebeu o Ministério da Economia e Agricultura do Reich e da Prússia. O novo superministro supostamente teria dito ao prefeito de Leipzig, Carl Goerdeler, que havia cometido o “maior erro” de sua vida ao se alinhar ao “maior demagogo da história mundial”, mas ainda hoje é difícil acreditar que tenha falado isso. Hugenberg, como Papen e os demais ministros conservadores, estava convencido de que poderia fazer Hitler abandonar suas próprias idéias e seguir a orientação dos demais.
Representantes de grandes empresas compartilhavam a mesma ilusão. Em um editorial no Deutsche Allgemeine Zeitung, que tinha laços estreitos com a indústria pesada, o editor-chefe Fritz Klein escreveu que trabalhar junto com os nazistas seria “difícil e cansativo” mas que as pessoas tinham que ousar “dar o salto” nas trevas “porque o movimento de Hitler tornou-se o ator político mais forte da Alemanha. O chefe do partido nazista teria agora que provar “se ele realmente tinha o que era necessário para se tornar um estadista”. O mercado de ações também não parecia assustado.As pessoas estavam esperando para ver o que aconteceria.
Os conservadores que ajudaram Hitler a ascender ao poder e seus opositores no campo republicano estavam errados em sua avaliação da verdadeira divisão do poder. Em 31 de janeiro, Harry Graf Kessler, diplomata e patrono das artes, relatou ter conversado com Hugo Simon, ex-colega do ministro das Relações Exteriores Walther Rathenau, assassinado em 1922. “Ele vê Hitler como prisioneiro de Hugenberg e Papen. ” Aparentemente, Kessler via da mesma forma, porque apenas alguns dias depois profetizou que o novo governo não duraria muito, já que só era mantido pelos “exageros e intrigas” de Papen ”, e argumentou: “Hitler já deve ter percebido que foi vítima de uma fraude. Ele está preso, de mãos e pés, a esse governo e não pode se mover nem para frente nem para trás”.
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