O que o ministério público federal entende de "avanço democrático"?
Chega a ser uma pilhéria ler-se na Folha
de São Paulo, ontem, artigo subscrito pelo Senhor Procurador-Geral da
República a defender as famigeradas "10 Medidas", difundidas em
estrondosa campanha institucional pelo ministério público federal. Foram
as propostas qualificadas por S. Exª como "avanço democrático", pois
seriam "fruto de uma longa e bem-sucedida iniciativa que angariou amplo
apoio popular, já que mais de 2 milhões de brasileiros o subscreveram”.
Nunca é demais reafirmar que as chamadas
"10 medidas" são objeto de intensa publicidade feita com recursos
públicos. Nada têm de iniciativa popular, mas, sim de iniciativa
corporativa vendida como remédio necessário para o "combate à corrupção"
e, em verdade, não passa de um grande engodo para que a sociedade venha
a aceitar restrições a garantias fundamentais.
Assinaram-na 2 milhões de incautos ou
desinformados, havendo, antes, a opinião pública, sido bombardeada com
notícias e editoriais que vendiam a corrupção como o maior mal do País.
Uma autêntica campanha de argumentos ad terrorem.
Por detrás de tudo está um projeto de
poder corporativo, que torna os órgãos do complexo policial-judicial
intangíveis pelos abusos que vêm cometendo em suas ruidosas
investigações por forças-tarefa. Pretendem aproveitar provas ilícitas,
querem o poder de amplo plea bargain a condenar cidadãos por
acordos que dispensem a instrução criminal, sonham em poderem armar
situações de ofertas ilusórias de peita para testar integridade de
funcionários, gostariam de tornar o habeas corpus mais burocrático,
impedindo juízes de concedê-lo ex officio sem audiência prévia do ministério público e por aí vai.
O ministério público não tem se revelado
uma instituição merecedora de tamanha confiança que lhe permita agir
sub-repticiamente contra a cidadania. Tem evoluído, isto sim, a um
monstrengo indomável pelo estado democrático de direito, megalomaníaco, a
querer sufocar todos outros formadores da vontade política da Nação.
Quer-se ungido por indiscutível superioridade moral que, no fundo, não
passa de arrogância e prepotência.
Querer qualificar isso de "avanço
democrático" é o cúmulo da falta de auto-crítica. Avanços democráticos
se fazem, antes de mais nada, defendendo a constituição e não agindo
contra ela. Onde estava o ministério público quando um deputado
quadrilheiro, hoje preso por representar risco à ordem pública, logrou
movimentar-se para destituir a presidenta democraticamente eleita? Onde
estava o ministério público quando o Sr. Moro divulgou criminosamente
interceptações feitas em chamadas da presidenta da república? Onde
estava o ministério público quando ministro supremo indisfarçavelmente
partidário da então oposição, impediu a entrada em exercício do
ministro-chefe da casa civil nomeado pela presidenta da república,
utilizando-se como "prova" de desvio de finalidade de sua nomeação
interceptações flagrantemente ilegais? Onde estava o republicanismo do
ministério público quando determinou com bumbo e fanfarra a instauração
de inquérito contra a presidenta da republica por fato à toda evidência
fútil às vésperas de seu julgamento pelo Senado?
A atual administração do ministério
público federal não tem o direito de pronunciar a palavra "democracia",
porque se associou, com ações e omissões, às forças do atraso,
carregando em suas costas o peso de parte decisiva do golpe contra um
governo legítimo para permitir se instaurar um regime autoritário de
rapina das conquistas sociais, de desprezo aos direitos fundamentais e
de cupidez com a pratica de desvio de poder para o atendimento de
interesses privados escusos. A inação desse ministério público que fala
de democracia foi causa eficiente para sacrifica-la. E agora quer posar
de força moral para "combater" a corrupção, como se fosse travar uma
guerra em que as convenções de Genebra e da Haia na têm aplicação:
tempos extraordinários exigem medidas extraordinárias, não é, Senhor
Procurador-geral?
Ninguém nega a importância de ações de
controle da corrupção. Mas não se pode vender a ideia que um direito
penal que distinga entre pessoas de bem e pessoas mais propensas ao
crime, ou seja, inimigos, possa validamente fazer esse serviço. Um
direito penal dessa espécie é a confissão do fracasso do próprio
controle, é direito penal simbólico a servir de escusa para a
incompetência em formular e implementar políticas estruturantes contra a
corrupção. Serve apenas para desopilar o fígado de uma sociedade cheia
de ódios e fobias, adredemente incutidas em seu seio para se tornar
manipulável por esse tipo de campanha que só tem por resultado a
alavancagem do poder corporativo.
Acorda, Brasil, pois "tem gente que está
do mesmo lado que você, mas deveria estar do lado de lá! Tem gente que
machuca os outros, tem gente que não sabe amar! Tem gente enganando a
gente: veja a nossa vida como está... Mas eu sei que um dia a gente
aprende. Se você quiser alguém em quem confiar, confie em si mesmo. Quem
acredita sempre alcança!" , para lembrar de rica lição de vida de
Renato Russo.
Eugênio Aragão, ex-Ministro da Justiça
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