Em fevereiro passado, o senador Randolfe Rodrigues protocolou pedido de convocação de comissão parlamentar de inquérito (CPI) para investigar a péssima gestão do governo federal no combate à pandemia de covid-19. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, fiel ao chefe do Executivo, Jair Bolsonaro, e ao apelido que lhe impôs sua atuação deletéria, de Placebo – a substância inócua inoculada para testar o valor das vacinas –, jogou-o na gaveta, usada como túmulo de iniciativas republicanas. Em março, Alessandro Vieira e Jorge Kajuru recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF) para forçar a convocação da providência, que, conforme a Constituição vigente, acode ao direito de minoria, e não da maioria parlamentar, representada pelo chefe da Mesa, que atua como chefão de bando.
Coube ao ministro Luís Roberto Barroso relatar o pedido. E o fez à luz do conceito constitucional que reserva à maioria o poder de decidir sobre leis e sabatinas para embaixadores e membros do Supremo Tribunal Federal (STF), mas não se pode arvorar em tirania sobre prerrogativas da minoria, que garantem o elementar na democracia. Em 8 de abril, o relator determinou ao chefão da assembleia dos veteranos (Senado tem origem etimológica no termo latino senior, mais velho) que adotasse as providências necessárias para que a comissão seja instalada, encaminhando a decisão ao plenário virtual do pretenso “pretório excelso”. Em 10 de abril, após ouvir seus pares, o presidente do STF, Luiz Fux, marcou a sessão plenária de julgamento da liminar para quarta-feira, 14 de abril. Nada de mais. Nenhum terremoto. Nenhum tsunami de intervenção jurídica. No entanto, o presidente Rodrigo Placebo arvorou-se em comentarista de atos do Judiciário, o que não lhe compete, e a definiu como “inoportuna neste momento em que estamos buscando resultados eficientes no combate à doença”, sem separar o umbu das cascas. Mas se calçou anunciando o óbvio: que não deixaria de cumprir a ordem.
O capetão artilheiro elevou o tom. “A CPI que Barroso ordenou instaurar, de forma monocrática, na verdade, é para apurar apenas ações do governo federal. Não poderá investigar nenhum governador, que porventura tenha desviado recursos federais do combate à pandemia. Barroso se omite ao não determinar ao Senado a instalação de processos de impeachment contra ministro do Supremo, mesmo a pedido de mais de 3 milhões de brasileiros. Falta-lhe coragem moral e sobra-lhe imprópria militância política”, escreveu Bolsonaro em suas redes sociais. Afinal, ele teme o quê, mesmo? E por que se isenta de cumprir sua obrigação?
O capitão, proibido de cursar a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (Esao) pelo general Leônidas Gonçalves, ministro do Exército no governo Sarney, por acusação de terrorismo e indisciplina, demonstrou que realmente não preza a democracia nem a própria instituição do Exército Brasileiro. Conforme constatou o autor de Os Militares e a Democracia, Eurico Figueiredo, na série Nêumanne Entrevista, esta semana, no Blog do Nêumanne no portal do Estadão. E sendo assim, como de fato é, não poderia prezar um direito líquido e certo da minoria, que trata como inimiga de guerra. Fê-lo desrespeitando o básico convívio pacífico entre os três Poderes republicanos, segundo pontificou Montesquieu. Trata um ministro da cúpula do Judiciário como se fosse um contendor em conflito verbal, cobrindo-o de insultos, que nos tempos da nobreza levariam a um duelo, se cavalheiro fosse, como Barroso tem mostrado ser, mas ele não.
Afundando no lamaçal moral em que submerge o Palácio do Planalto, sob seu desmando, contudo, a autoridade máxima da república dos ringues foi introduzida na tragédia dos erros por um dos autores da petição acolhida pelo relator, Jorge Kajuru. Num lance digno de pugilato sem regras, este lançou nas redes sociais, não se sabe a que propósito, diálogo travado com o chefão do Executivo, diatribes de compadritos em tramoia de desmiolados. Do papo Kajuru deu-se ao desplante de cortar parte sem explicar por quê. Do que se soube foi possível ouvir que o presidente cobrou do autor da petição a ausência de governadores e prefeitos na investigação da CPI. Bolsonaro disse que Kajuru “tem de fazer do limão uma limonada”. E o interlocutor prometeu esforçar-se.
Nessa conversa nada é respeitado: nem a relação republicana que deve ser estabelecida entre o mandatário maior do Poder que executa e o ocupante provisório do mandato popular para legislar, muito menos a absurda interferência dos dois na alçada do magistrado do órgão máximo de um Poder autônomo. Ambos incorreriam, numa República que merecesse o respeito da cidadania e paga os vencimentos de ambos e de seus séquitos de servidores fiéis, em quebra de decoro, que até os delinquentes do crime organizado respeitam em suas organizações. Que Bolsonaro e Kajuru deem um mínimo de atenção aos conceitos elementares da civilidade seria ingênuo exigir. Um “cidadão de bem” – que não figure no gado bolsonarista, que permite tudo a seu pastor, nem nos seguidores do populismo rasteiro do senador – deveria esperar é que os “pais da Pátria”, como ambos sustentados pelo suor vertido pelos cidadãos assolados pela pandemia, agissem, Para lembrar ainda que, em sua pretensa mineirice, o presidente do Senado teria a obrigação de cobrar o mínimo de decoro de um governante e um representante do povo que não se comportam à altura dos votos que tiveram e aos quais recorrem para impedir a interrupção de seus mandatos. Nenhum deles pode dar-se ao luxo da cafajestice impune.
*Jornalista, poeta e escritor
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