POR LENIO LUIZ STECK, jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor e Direito
Plenário do Supremo Tribunal Federal durante o julgamento do habeas corpus de Paulo Maluf nessa quarta-feira. Foto: Carlos Moura/SCO/STF – 18.4.18
“Você gostará de saber que nenhum desastre sucedeu ao iniciar-se um empreendimento que você olhava com tantos maus pressentimentos.”
São essas palavras que abrem Frankenstein, de Mary Shelley. Na obra, é bem sabido, o jovem cientista, Victor Frankenstein, cria, na falta de outra palavra, um monstro.
Pois bem. Temo que o Supremo Tribunal Federal tenha, com boas intenções, criado um Frankenstein. Mas o cenário é diferente daquele que era inaugurado pelas palavras que abrem a genial obra de Shelley.
De pronto, vejamos os efeitos colaterais. Leio, na ConJur, a seguinte notícia: “Ministro do STJ manda à primeira instância ação contra governador da Paraíba”.
“Com base na recente decisão do Supremo Tribunal Federal que restringiu o foro por prerrogativa de função de senadores e deputados federais aos crimes cometidos durante o exercício do mandato e em razão da função pública, o ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, aplicou o princípio da simetria para determinar a remessa à Justiça da Paraíba de ação penal contra o atual governador do estado, Ricardo Vieira Coutinho (PSB).”
Bem, vamos lá. Princípio da simetria. Por que simetria é um princípio? O Direito brasileiro tem centenas de princípios, mas, até agora, paradoxalmente, há uma enorme dificuldade em sabermos o que é isto — o princípio.
Falei com mais vagar sobre isso em meu Verdade e Consenso, mas o ponto fundamental é que enquanto simetria é tratada como um princípio, ela é, em verdade, uma espécie de “metaprincípio”, ou “superprincípio”, construído para servir de plus principiológico na ocorrência de eventual falta de previsão daquilo no qual se quer chegar de antemão. É muito menos um princípio de validade geral que um mecanismo ad hoc, capaz de, a partir de uma “obrigatoriedade de aplicação simétrica”, de caráter retórico, conferir verniz jurídico à aplicação de algo-que-foi-aplicado-de-forma-distinta-em-outro-lugar-mas-queremos-aqui-também.
Esse algo, aplicado em outro lugar, de forma distinta, que o ministro Salomão também quis, e trouxe “simetricamente” ao STJ, é, todos sabem, a restrição do alcance do foro por prerrogativa de função de parlamentares federais, decidida por maioria do colegiado do Supremo Tribunal Federal.
O que o STF decidiu? Decidiu que seria restrito o alcance do foro por prerrogativa de função, o popular — ou, nesse caso, impopular? — “foro privilegiado” de parlamentares federais. Foro de parlamentares federais. E não de outros cargos.
Mas, “por simetria”, diz o ministro Salomão que “a mesma lógica deve ser aplicada pelo Superior Tribunal de Justiça em relação às pessoas detentoras de mandato eletivo com prerrogativa de foro perante a corte”. Bom, se for verdadeira a tese, isso tem de ser estendido, ainda hoje, para todos os tribunais, inclusive de contas e ministérios públicos.
Vamos por partes. Primeiro, a decisão que alterou a Constituição, transformando o STF em poder constituinte permanente. Retomo aqui um ponto que o ministro Gilmar Mendes bem trouxe, verbis:
“neste caso [o do foro], o STF não está verdadeiramente interpretando a Constituição Federal, mas a reescrevendo. Para disfarçar o exercício do poder constituinte, tenta dar-lhe o verniz da interpretação jurídica das normas constitucionais.”
Não bastasse isso, vejam o que fez o STJ, por sua vez: não interpretou autenticamente a decisão do STF, mas a reescreveu. Para disfarçar o exercício do poder decisório, tenta dar-lhe o verniz da interpretação jurídica dos princípios.
Eis o problema. O STF disse o que quis sobre a Constituição, para atender ao que alguns ministros chamam de “clamor das ruas” ou “anseios por um Brasil novo”, e o STJ, na sequência, também por certo imbuído das melhores intenções, disse o que quis… sobre a decisão do STF.
Preocupa-me essas reinterpretações. Volto ao voto do ministro Gilmar Mendes, que apontou e alertou:
“[O] que vêm a ser ‘crimes cometidos em razão do ofício e que digam respeito estritamente ao desempenho daquele cargo’? Seriam enquadrados em crimes praticados antes do exercício da função, buscando a ascensão ao cargo, como os delitos eleitorais? Ou a corrupção, anterior à função, mas em razão dela? Apenas delitos praticados por funcionário público contra a administração pública estariam enquadrados, ou qualquer delito ligado à função? O assassinato de um inimigo político seria enquadrado? O tráfico de drogas usando o gabinete funcional? Uma investigação de lavagem de dinheiro, iniciada pela constatação de movimentação de patrimônio incompatível com a renda pelo agente público, seria conduzida em qual instância? Como ficariam as medidas investigatórias e cautelares? (…)?”
Nenhuma dessas perguntas, de relevância auto-evidente, sequer foi enfrentada. E, no lugar das respostas, o que temos? A mutação da decisão que pratica mutação constitucional. O alcance do foro de parlamentar federal, reinterpretado abruptamente, não responde às perguntas fundamentais que nos dariam segurança.
Ao não o fazer, criou-se o imbróglio. Qualquer autoridade detentor de foro por prerrogativa de função, vingando a simetria praticada pelo STJ, se estiver respondendo a um crime não relacionado à função ou que vier a cometer um crime desse naipe ou ainda que estiver respondendo a crime cometido antes de ter assumido o cargo (deputado, juiz, promotor, procurador, conselheiro, etc.), será investigado pela polícia (não mais pelo próprio órgão) e será denunciado pelo MP de primeiro grau e julgado por juiz de primeira instância.
Ou seja, se a simetria do ministro Luis Salomão valer mesmo, todos os inquéritos que tratam de condutas criminosas imputadas a deputados estaduais, juízes, promotores, procuradores da república, ministros do STJ e até mesmo ministros do STF (sim, eles não podem ficar de fora de sua própria decisão, pois não?), imediatamente deverão sair dos respectivos órgãos e encaminhados à primeira delegacia de polícia da região. Simples assim.
E o inusitado: o governador ou o ministro pode estar respondendo a inquérito ou ação penal junto ao primeiro grau e, se tiver matéria de habeas corpus, quem deverá apreciar esse writ será o STJ ou STF, em razão da função do indiciado ou réu. E, como perguntou o ministro Gilmar:
“Poderia um juiz de primeira instância quebrar o sigilo, sequestrar patrimônio ou impor medida cautelar pessoal a qualquer autoridade? Dado que a jurisprudência do STF tem admitido a investigação do Presidente da República, poderia qualquer dos mais de 18.000 (dezoito mil) juízes do país determinar busca e apreensão no Palácio do Planalto?”.
Numa palavra, você não gostará de saber que um desastre sucedeu ao iniciar-se um empreendimento que você olhava com tantos bons pressentimentos. De todo modo, há ainda uma questão maior que não pode ser escondida, até porque não se pode esconder um elefante atrás de uma formiguinha. Falo do fato de esta mudança ser matéria de lei e de alterações nas constituições estaduais. Se o STF “regulamentar” essa matéria toda (e isso exigirá uma extensa capilarização regulamentatória), violado estará, também neste aspecto, o preceito fundamental da divisão de Poderes. Cabe ADPF. E o que dirá o STF em uma ADPF contra ele mesmo? A ver.
Post scriptum: Enquanto isso, o Tribunal de Contas da União dá aula sobre “independência interpretativa”
Cedo da manhã (não) sou surpreendido pela seguinte ementa de decisão do TCU (2ª câmara, relator ministro José Mucio Monteiro), verbis:
Não há direito adquirido a determinado entendimento ou à aplicação de determinada jurisprudência do TCU, devendo prevalecer, em cada julgamento, a livre convicção dos julgadores acerca da matéria.
Fico pensando: por que ainda insistimos em estudar ou escrever sobre Direito no Brasil?