É de obscura proveniência medieval o provérbio "sunt pueri pueri – pueri puerilia tractant". A aparente tautologia poderia ser traduzida por "sois meninos, seus meninos! e meninos fazem meninices!".
Outra frase, esta de Virgílio, que, neste dramático momento nacional me vem à mente é "quid legitis flores et humi nascentia fraga, frigidus, O puer fugite hinc, latet anguis in herba"
(Éclogas III 93), com o sentido de - fujam, meninos pastores que colhem
flores e morangos ao solo, (pois) a serpente se esconde debaixo da
relva.
Ao tempo em que Moro se festeja com falsa modéstia em sua mais que
previsível sentença condenatória contra Lula, propaga-se que os
norte-americanos realizam manobras militares na Amazônia com os
exércitos do Brasil, da Colômbia e do Peru, a tríplice aliança
subcontinental da reação ao progresso, à altivez e à independência dos
povos latino-americanos.
Moro, o embevecido juiz que gasta quase uma centena de páginas na
sentença para se justificar e atacar a defesa que legitimamente apontou
para sua suspeição ao longo de todo o processo, se comporta como o
menino com suas meninices. E a serpente que o colocou lá onde está nos
vigia para dar o bote final. No rastro dessa toada, já destruiu
estratégicos ativos nacionais, como a indústria da construção civil e o
setor pecuário. Tudo em nome de um fetichista combate seletivo à
corrupção que virou fixação coletiva.
Não fosse tão trágica no momento que o Brasil do golpe vive, a
sentença de Moro seria uma piada, de tão tosca. Mal instaurada a
instância, ninguém tinha dúvida que o brioso magistrado pretendia
construir seu currículo com a condenação do ex-presidente, ao passo que
socializava abertamente com a oposição mais feroz aos governos do PT das
últimas duas décadas. A foto do juiz em bem-humorada confraternização
com Aécio Neves, às costas de Temer, é muito eloquente. Está ali, Moro,
com toda a simpatia que contrasta com a agressividade no trato coma
defesa de Lula. Um juiz no speak easy com
um político de quinta categoria, acusado, com indícios mui robustos, de
desvio de recursos públicos, de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e
organização criminosa. O interlocutor risonho não é ninguém menos do
que o derrotado candidato a presidente da república, que, por não
assimilar sua derrota, jogou a democracia brasileira na sua pior crise
desde a reinstalação do governo civil em 1985. Mas Moro mostra com suas
gargalhadas que aprova integralmente o golpe dado pelas instituições
deformadas do país. É visível sua
ternura para com aquele que foi o estopim da derrocada dos governos populares de que Lula foi seu maior protagonista.
À sentença. Li e reli relatório e qual não foi minha surpresa ao não
detectar em nenhum de seus parágrafos enumerados com meticulosidade
burocrática qualquer referência às testemunhas da defesa. Já a indicação
dos testemunhos de acusação mereceu cuidadosa indexação. Vou para a
fundamentação. Páginas mais páginas de autodefesa do brioso juiz de
piso. Ao réu, palavras de ressentimento por ter exercido em toda
extensão possível seu direito de defesa. Digo "possível" porque os
defensores tiveram que fazer uma dantesca viagem ao inferno para
garantir a ampla defesa. O juiz tentou negociar a diminuição de suas
testemunhas em troca do direito processual a prazos de manifestação.
Disse que ouvir as testemunhas arroladas em número menor até do que
permitido pela lei era uma manobra protelatória. Na única oportunidade
em que esteve frente à frente com Lula, o corajoso magistrado fez
trancar toda a redondeza da sede da justiça federal com uso de
desproporcional aparato policial. E, quando o réu fazia uso da palavra
em sua autodefesa, Moro foi o interrompendo, mostrando impaciência e até
profunda antipatia por aquele que foi o maior estadista do Brasil no
período republicano, comparável só mesmo com personagens do porte de
Getúlio Vargas.
Moro, o pequeno burocrata judicial, se pretendia, porém, maior.
Violando a regra do procedimento acusatório, preferiu fazer perguntas ao
réu gigante, antes do representante do Ministério Público, que
permaneceu calado, cúmplice da farsa que ali se encenava. Aliás, o
representante era um backbencher da Lava-Jato, já que o
palestrante pio Dallagnol preferiu não dar as caras, certamente com medo
de ser destruído no duelo retórico com Lula.
As perguntas de Moro versaram sobre o sabor do pomo proibido
degustado por Adão e Eva no Paraíso. Interpelado pela defesa, insistia
na relevância do aspecto "circunstancial" do pecado original. Via-se
como o próprio arcanjo que expulsava o casalzinho desnudo do Éden, com
sua espada flamejante. Foram tantas perguntas fora do lugar - obscenas
no sentido próprio - que já indicavam a intenção do julgador de condenar
o réu por protagonizar um enredo midiatizado – o sempre lembrado
“conjunto da obra” – sem qualquer objetividade e base probatória. O tal
triplex do Guarujá, verdadeiro motivo da contenda, era o que menos vinha
ao caso.
Moro nunca escondeu sua profunda aversão a Lula. Tornou
criminosamente pública gravação de conversa telefônica do réu com a
Presidenta Dilma Rousseff, interceptada ilicitamente. Fê-lo somente com
intuito de destruir reputações e interferir no processo político que
inaugurava o golpe parlamentar liderado pelo hoje condenado e
encarcerado Eduardo Cunha. Este, em incipiente delação recente, parece
querer informar sobre toda a trama do impedimento da chefe de estado,
que contou com inegável apoio do brioso juiz.
Este é o Moro que condena Lula. O festejado Moro, que, a despeito de
ter logrado exclusividade para o trato com os processos da Lava-Jato,
supostamente porque lhe faltava tempo para lidar com outras causas da
competência legal de sua vara, encontra ócio suficiente para rodar o
mundo com digressões públicas sobre os feitos sob sua responsabilidade.
Mas, voltemos à sentença. Mesmo com esforçado enchimento de linguiça,
o juiz de piso não consegue disfarçar a falta de prova para demonstrar o
que interessa: ser ou não ser Lula proprietário, oculto dono ou
promitente comprador do triplex. Só o coitado do Léo Pinheiro, em sua
delação sem qualquer valor de evidência, foi, depois de meses no
cárcere, obrigado a apontar para Lula como o beneficiário de um suposto
esquema de suborno, não sem antes avisar que não tinha provas da
acusação, porque o réu lhe teria feito destrui-las. Ninguém mais
confirma essa tese esdrúxula. O fato é que o tal imóvel nunca pertenceu a
Lula.
In der Kürze liegt die Würze, dizem os alemães. Na brevidade
está o sabor. Em outras palavras, quem precisa de mais de duzentas
paginas para explicar e julgar tão singela acusação não pode ter razão.
Tudo não passa de conversa para boi dormir, para impressionar o público
leigo, que adora uma novelinha das oito. Mas nada disso impressiona
juristas sérios.
Ao final, temos que Lula foi condenado PORQUE não havia provas contra
ele. Mais kafkiano impossível. Supôs o juiz que o réu é um caráter
deformado, capaz de ocultar a propriedade de um imóvel, sem deixar
qualquer vestígio dessa propriedade. Só rindo mesmo, se esse modo de
agir não fosse tão desastroso para a credibilidade das instituições do
país.
Mas nos resta a esperança de acreditar que ainda existem juízes em
Porto Alegre. Para recuperar a moral da prestação jurisdicional e
redimir o Brasil das tramas estratégicas globais dos inimigos de sua
independência, de certo saberão apontar para as gritantes teratologias
da sentença e não deixarão sua razão ser ofuscada pelo ódio político que
tomou conta do país. Só assim os desembargadores conseguirão dar sua
imprescindível contribuição à normalização institucional e à
sobrevivência da democracia entre nós. Quanto aos meninos de Curitiba,
se seu objetivo for apenas tornar Lula inelegível em 2018, não passarão!
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