Meu tio era um homem de conversa
envolvente. Visionário, realista, solidário e extremamente humano.
Impressionava. Era diferenciado. Parecia entender sobre cada pessoa. Por
idealismo, era comprometido e implacável na defesa intransigente dos interesses
da cidade que escolheu viver (Jupi).
Nunca alimentou ódios nem
mágoas. Relacionava-se bem até com os mais ferrenhos adversários. Tinha uma
mente política ativa e com muita perspicácia.
27 de outubro de 1971. Nesta
data, sem nenhuma conotação política, um ser violento e covarde tirou a vida do
meu tio, um jovem de apenas 33 anos.
Morreu, deixando sonhos,
esperanças...
O tempo passa. Sou viajante do
tempo. Vou e volto. Sempre!
É... Lá se vão 41 anos de
saudades e recordações.
No início da década de 60, o Brasil atravessava uma profunda agitação
política. Com a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961, assumiu seu
vice, João Goulart (Jango), um homem de convicções esquerdistas para a então
política brasileira.
Faziam parte dos planos de Jango reduzir as desigualdades sociais
brasileiras. Entre estas, as reformas bancária, eleitoral, universitária e
agrária.
O perfil de Jango preocupou as elites, que temiam uma alteração social
que ameaçasse seu poder econômico. Por esta razão, tomaram decisões que
enfraqueceram o presidente. A mais famosa foi implantar o parlamentarismo, que,
em 1961 e 1962, atribuiu funções do presidente ao Congresso, então dominado por
representantes das elites. O regime presidencialista foi restabelecido em 1963
após um plebiscito.
A crise econômica e a instabilidade política avançavam no país. Jango
propôs as reformas constitucionais que aceleraram a reação das elites, criando
as condições para o golpe de 64.
Março de 1964. Aconteceu o estopim do golpe militar, quando Jango, após um
discurso inflamado no Rio de Janeiro, determinou a reforma agrária e a
nacionalização das refinarias estrangeiras de petróleo.
Imediatamente, a elite reagiu.
No dia 31 de março os militares iniciam a tomada do poder. No dia 2 de
abril, Ranieri Mazilli assumiu a presidência interinamente. Dois dias depois,
João Goulart se exilou no Uruguai.
Em 9 de abril, foi editado o AI-1 (Ato Institucional número 1), que
depôs o presidente e iniciou as cassações dos mandatos políticos. No mesmo mês,
o marechal Castello Branco foi empossado presidente com um mandato até 24 de
janeiro de 1967.
A ditadura militar de 1964 criou
dois partidos: ARENA (Aliança Renovadora Nacional), da situação, e MDB
(Movimento Democrático Brasileiro), da oposição. Os militares convenceram
alguns políticos a se filiarem ao MDB. Meu tio, Zé Cavalcanti, entrou no MDB
espontaneamente.
Embora a repressão política
tenha se iniciado em abril de 1964, tornou-se mais evidente após a edição do
Ato Institucional n° 5, em 1968, ao suprimir os direitos de cidadania, dando
poderes totalitários ao Sistema que governava o país. Nessa época um simples
simpatizante do socialismo era chamado de subversivo. Época de prisões,
torturas e mortes. Impuseram o silêncio de toda e qualquer forma, objetivando
prevalecer seus interesses. Tempos de muito sofrimento e angústia. Não há
exagero no que estou relatando. Nenhum. Tudo isso representa a expressão da
realidade daquele período sombrio. Tudo era repressão. Ausência total de
liberdade. Nos anos 60 e 70 a desesperança tomou conta de muitos.
47
anos após a instalação do golpe militar, é possível compreender a verdadeira
importância da postura
de meu tio diante dos desafios que enfrentou numa luta incansável ao lado de
Arraes, Brizola e tantos outros em busca do bem comum como horizonte a ser
perseguido.
Desde o primeiro instante, de forma aguerrida e corajosa, Zé
Cavalcanti, levantou a voz contra os excessos do regime dos generais.
Ele era dos debates onde fosse
possível. Nas ruas, nos sítios estava sempre apoiando os movimentos de
resistência ao golpe militar.
Por isso, foi preso.
Na tortura física, a dor vai
além dos limites da força humana. Com o tempo se recupera. Já o trauma
psicológico, se carrega para o resto da vida.
Sua atuação em defesa da reconstrução democrática fez dele um
patrimônio político do Agreste Meridional de Pernambuco.
Ele ajudou
a construir a democracia que aí está consolidada.
Homem
de coragem, decidido. Sempre enfrentou os poderosos de maneira desassombrada.
Recordo-me de um fato
significativo. Meu
tio era candidato a Prefeito de
Jupi e num comício no Centro de Jucati (Distrito de Jupi), enfrentou policiais que
foram proibir aquele ato público.
Numa
fração de segundos, percebeu que de sua atitude dependia o futuro daquela
caminhada política. Com determinação disse: “Subam no palanque e venham tomar o
microfone”. Os soldados entreolharam-se e desorientados se retiraram. Com esta
atitude, a força do ideal derrotou o poder da força.
Zé Cavalcanti lutou pela democracia e fez dela uma razão de viver. Daí, os depoimentos a
seguir:
Josevalda (filha): Meu pai! O maior orgulho da minha vida!
Júnior,
o seu avô (meu pai!), José Cavalcanti de Albuquerque foi um homem que viveu no
auge da ditadura militar e, como defensor que era do direito, da verdade, da
dignidade, pelo contexto da época, foi um preso político, por defender a mesma
causa que Miguel Arraes, sendo um dos seus aliados. Mas ele acreditava, sonhava
com a possibilidade de, um dia, cada cidadão poder exercer a sua cidadania com liberdade, participação e dignidade! Você
acredita nisso... E eu sinto orgulho por você ser assim! Não importa que o
poder pelo poder, que o domínio cerque tanto as pessoas (pq, pra isso, elas são
atendidas e presas pelo q significa a sua sobrevivência, e eu culpo o
capitalismo!), que ofusque a possibilidade de liberdade, de uma luta livre por
dias melhores e mais iguais... Não importa. Continue acreditando, sonhando,
ajudando!... Continue respeitando quem tem uma visão diferente de tudo isso (cada
um tem seus motivos!), até pq vc defende o direito de ser de cada um, não é?
Alguns irão criticar e dar vários nomes a essa luta, não importa! Outros irão
aplaudir de forma tímida, pq podem depender de alguma forma de quem detém o
poder e não permite essa liberdade... outros irão lutar junto... É a vida! Mas,
que haja o respeito às diferenças, às limitações, às escolhas!... Deus o abençoe,
meu filho, nesse seu jeito meigo e amigo de ser, nessa sua busca do crescimento,
antes de tudo, interior!
Júnior (filho de Josevalda): José Cavalcanti de Albuquerque. Um homem movido pelas duas mãos e o
sentimento do mundo.
Izabel Lima (amiga da família): Alguém precisa escrever sobre ELE. Os jovens jupienses merecem
conhecer sua história.
Evilasio
Pereira (amigo da família): Ele foi um homem de
grande importância na política de Jupi!
Viver é caminhar. A vida é um longo caminho a
percorrer. A gente faz o caminho caminhando. Neste caminhar se entrelaçam
outros caminhos, com muitos outros caminhantes. Este é o nosso viver. O caminho
pode ser cheio de encantos, surpresas, dificuldades e riscos. O caminho pode
ser longo, mas é preciso caminhar. Não é fácil construir o caminho da vida. Não
é fácil construir o próprio caminho. Muito mais simples é ignorar a caminhada,
acomodar-se, ficar na beira da estrada, nada mais simples do que ficar e
esperar a vida passar e acontecer, simplesmente parar no caminho é passar pela
vida sem viver. O caminho é difícil, vamos derrubar as barreiras que vão
surgindo. O caminho é perigoso, é preciso ter coragem para correr riscos. Nós
mesmos devemos construir o caminho...
Ele correu riscos. Foi um
guerreiro justo e incansável.
Com sua morte ficou um vazio. Na
vida de muita gente, na própria história. Um guerreiro não é um personagem
comum. Mesmo morto continuará a sua história. Os guerreiros fazem a história.
Os normais, simplesmente morrem.
Deixou ensinamentos que servem
de referência para todos nós.
Para sempre a história de Jupi
guardará o nome desse guerreiro do povo.
Está gravado em minha memória o
tempo que convivi com ele.
Sou admirador e reconhecedor de
sua grandeza, tanto como homem público, quanto como ser humano. Tenho orgulho e agradeço a Deus
por ter o privilégio de ser seu sobrinho.
Obrigado meu
tio, pelo imensurável aprendizado de vida.
SAMUEL
SALGADO
Março
de 2013
Samuel Salgado é Ex prefeito de Angelim, Professor do IFPE/Campus Belo Jardim, é Mestre e Doutorando.
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