247-Sem um grama de espírito panfletário, pode-se dizer que o poder de uma classe dominante funciona assim mesmo.
Depois de conduzir um processo
seletivo de criminalização e encarceramento de adversários políticos,
os aliados de Michel Temer, acusados de envolvimento nos mesmos crimes
de corrupção apurados na Lava Jato resolvem preparar um conforto
exclusivo -- encerrar a operação e garantir anistia para os amigos que
deram o azar de serem apanhados na operação. Depois que as forças do
adversário foram duramente atingidas, suas fileiras se encontram
dispersas e boa parte das lideranças, encarceradas, procura-se fazer
uma previsível correção de rota.
A entrevista de Michel Temer
publicada no Valor de hoje é parte deste esforço. Apanhado numa delação
premiada de Marcelo Odebrecht, Temer admitiu que recebeu o dinheiro. Não
foram 10 milhões de reais. Foram 11,3 milhões esclareceu, com prudência
profissional, já que este é o número consta da "prestação de contas do
período." Temer fala de um período em que, como vice presidente da
República e presidente do PMDB, havia uma "enxurrada de empresários
querendo colaborar" e que, na época, 2010, isso era perfeitamente legal.
Tocando no nervo da discussão, afirmou aos jornalistas:
"Essas doações estão sendo
criminalizadas. Por quê? Não pelo seu aspecto formal, mas pelo seu
aspecto mais indutivo, achando que aquilo entrou porque havia propina.
Então, vai precisar provar que aquele valor que entrou no partido e que
houve prestação de contas é fruto de propina. É uma questão a ser
examinada."
Este é o ponto em
discussão. Envolve o destino de investigações que começam a se aproximar
de figurões do governo Temer -- além do próprio interino, estão citados
José Serra e Eliseu Padilha, sem falar no eterno Aécio Neves.
Também diz respeito a quem está
interessado em debater formas de reconstruir o sistema democrático
massacrado por condenações duríssimas. Ainda envolve os debates sobre
acordos de leniência, que protegem os empregados de uma empresa -- e o
PIB do país inteiro -- contra desmandos e abusos cometidos por
executivos e dirigentes acusados de corrupção. Podemos avançar numa
saída democrática. Ou abrir espaço para um regime autoritário, que
exclui a participação das lideranças populares.
O argumento do presidente
interino ajuda a recordar que o eixo das condenações da Lava Jato foi
constituido por essa mudança de natureza. Alterou-se a visão do chamado
objeto investigado. Aquilo que se via como doações de campanha, e que
eram perfeitamente legais na época, constituindo no máximo
irregularidades fiscais conhecidas como caixa 2, passaram a ser
classificadas como propina. Não era um percurso fácil, porém.
Em março do ano passado, quando o
impeachment não passava de um projeto obsceno dos adversários de Dilma
vencidos cinco meses antes nas urnas presidenciais, a Folha de S. Paulo
registrou a dificuldade de separar uma coisa da outra."Doação ou
propina," escreveu o jornal em editorial, que informou: "Em relatórios
enviados ao STF, Polícia Federal diz que, em alguns casos, dispõe de
'elementos iniciais' a indicar que a doação eleitoral foi utilizada como
forma de corrupção." Conforme o jornal, em alguns casos a própria "PF
ressaltava a necessidade de aprofundar análises."
Já naquele momento, as
investigações apontavam para um equilíbrio notável na distribuição de
doações de campanha, que jamais seria acompanhado, mais tarde, pela
investigações e punições. Um levantamento do Estado de S. Paulo mostrou
que entre 2007 e 2013, o PMDB, PSDB e PMDB receberam um bolo total de R$
571 milhões em donativos de empresas, dos quais 77% haviam saido de
empresas com negócios ligados a Petrobras, alvo da Lava Jato. Segundo o
jornal, o Partido dos Trabalhadores ficou com a maior parte e o PSDB
veio logo atrás, com mais 42% dos donativos. Na campanha de 2014, as
grandes empreiteiras envolvidas também fizeram doações aos grandes
concorrentes, partilhando somas equivalentes mas não iguais. Se a OAS
chegou a doar R$ 30 milhões a Dilma, deixando R$ 10,7 milhões para
Aécio, a candidata do PT recebeu R$ 16,8 milhões da Andrade Gutierrez,
contra R$ 20,2 milhões para Aécio.
Como registrei em A Outra
História da Lava Jato: "Estamos falando de quem negocia bilhões de
reais, para lá e para cá. Dinheiro puro, sem ideologia. Vamos falar em
cortesia e boas maneiras?"
Interpretando o espírito da
legislação, escrevi: O jogo sempre foi este e é para ser este: pedir e
prometer, pagar e esperar."
O que separa uma coisa da outra? A política.
Entrevistado neste espaço, o professor Sidne Chalhoub, que leciona História do Brasil em Harvard, esclarece o ponto:
-- Hoje o Judiciário tem hoje um
poder imenso, sem paralelo. A tese é que 'tudo é corrupção e todos são
corruptos.'A partir daí, cria-se o arbítrio, que é o caminho para a
seletividade, para o uso político da Justiça."
Avançando no ponto de vista,
Chalhoub explica que a natureza da legislação contribui para esse poder
discricionário dos magistrados:
"Nosso sistema legal tem regras
múltiplas, contraditórias e incoerentes. Essa situação cria um espaço
infinito para se agir arbitrariamente, porque a cada dia você pode mudar
a interpretação de determinada lei, de uma regra, e aplicá-la
seletivamente."
A política entrou em cena, nos
primórdios da Lava Jato, para culpar e criminalizar. Volta a cena,
agora, para aliviar e inocentar.
Essa é a questão. As coisas não poderiam estar mais claras.
Após a destruição do sistema
político construído a partir da Constituição de 1988, que instituiu o
mais amplo e duradouro regime de liberdades públicas da história do
país, o plano é consolidar uma nova ordem republicana.
Ampla, geral e irrestrita, a
anistia de 1979 preparou a democracia dos anos seguintes. Recusou as
objeções contra Leonel Brizola, Miguel Arraes e outras lideranças
consideradas indesejáveis pelos poderosos de então. Deu-se um jeito para
abrir a porta das cadeias para os condenados por ações armadas. Nasceu
um país onde a liberdade de expressão e o direito de organização eram
valores absolutos. Os partidos comunistas, mantidos na ilegalidade desde
1947, foram legalizados antes da Constituinte. As centrais sindicais,
alvo de perseguição duríssima por parte dos golpistas de 64, puderam ser
organizadas.
O debate, hoje, envolve o país
dos próximos anos, onde a votação do impeachment de Dilma será uma
fronteira. A anistia entre amigos humilha os que acreditam que todos são
iguais perante a lei. Institui a desigualdade como método preferencial
de tratamento político.
O acordo que se busca em 2016 tem
como base a preservação dos amigos e a exclusão de lideranças populares
que têm sua expressão maior é o Partido dos Trabalhadores, cuja
extinção já aparece no radar, e a consolidação de um monopólio político
conservador, à prova de alternâncias no poder, como aquela iniciada pela
chegada de Lula ao Planalto, em 2003. Recuperando uma posição de força
perdida no final da ditadura militar, a classe dominante não quer
riscos.