A influência de Roberto Marinho na cultura do vale tudo.
Crescer ou morrer: Roberto Marinho
Existe uma passagem no livro Dossiê Geisel – uma compilação de papeis
do arquivo pessoal de Geisel – que conta muito sobre o espírito da
Globo.
O governo militar – que criara a Rede Globo para receber apoio
maciço na televisão – começara a ficar preocupado com o monopólio da
emissora. Os militares não queriam que a emissora crescesse mais.
A Globo, por isso, não receberia novas concessões.
Roberto Marinho se insurgiu.
Numa conversa com um ministro de Geisel, registrada e depois guardada
pelo ex-presidente, Roberto Marinho explicou a filosofia da Globo. Ele
queria que tirassem os freios à expansão de seu negócio.
Uma empresa que não cresce declina, afirmou Marinho.
Na visão dele, a Globo teria sempre que crescer para não entrar em declínio.
Crescer a qualquer preço seria uma consequência natural do
modo de ver as coisas de Roberto Marinho: ele jamais se caracterizou por
escrúpulos ou magnanimidade.
Num dos episódios mais reveladores de sua vida empresarial, submeteu o
concorrente quebrado Adolpho Bloch a uma espera interminável em sua
antessala. Bloch precisava de dinheiro. Ao recebê-lo enfim Roberto
Marinho disse: “Passar bem.”
Foi essa a maneira que ele encontrou de responder a Bloch depois de
um episódio em que o direito de transmissão do Carnaval do Rio fora dado
à Manchete.
Seus herdeiros – Roberto Irineu, João Roberto e José Roberto – são continuações e extensões do pai.
Isso significou que, morto Roberto Marinho, as coisas continuaram essencialmente do mesmo jeito na Globo.
Ou crescemos ou estamos fritos.
Se você acredita nisso, tende a tomar grandes riscos para o avanço ininterrupto.
Se os riscos parecem protegidos por um esquema que garanta, ou quase
garanta, impunidade, você num certo momento já não enxerga limites.
O espetacular caso da trapaça fiscal para não pagar os impostos
relativos à compra dos direitos de transmissão da Copa de 2002 se
encaixa aí.
Por que não fazer algo que evitaria o pagamento de milhões de reais? A
Receita poderia pegar? Difícil: quem quer encrenca com a Globo?
E se uma eventual disputa fosse parar na Justiça?
Roberto Irineu com Gilmar Mendes, do STF
Ora, a Globo tem excelentes conexões na Justiça. O mais novo
integrante do Supremo, Luiz Roberto Barroso, era advogado da organização
de lobby da Globo, a Abert.
Num artigo publicado no Globo, Barroso defendeu a reserva de mercado para a mídia brasileira com argumentos engraçados.
Num deles, dizia que seria arriscado uma emissora estrangeira –
chinesa, suponho – fazer propaganda, no Brasil, da ideologia de Mao
Tsetung.
Em outro, classificava as novelas de patrimônio cultural brasileiro.
Não poderíamos arriscar perder esse patrimônio, segundo Barroso.
As relações são sempre renovadas. Recentemente, a Globo empregou o
filho de Joaquim Barbosa. Algum tempo antes, como revelou o Diário, JB
pagara – quer dizer o erário pagara – as despesas de viagem de uma
jornalista do Globo para cobrir uma palestra insignificante sua na Costa
Rica.
Uma das vozes mais estridentes em defesa dos interesses dos Marinhos –
Merval Pereira – desfilou várias vezes com Ayres Brito,
recém-aposentado do Supremo.
O magistrado escreveu o prefácio de um livro de Merval sobre o
Mensalão. Na luz do sol. Isso quer dizer que, com o passar dos anos e
com a consolidação da impunidade, você já não enxerga coisas como a
abjeção de relações promíscuas. Merval e Ayres Brito sorriram para as
câmaras como se a aliança entre ambos fosse natural.
Quem acredita que o caso dos direitos da Copa de 2002 foi o único acredita em tudo, como disse Wellington.
Nos últimos anos, a Globo se esmerou em práticas destinadas a sonegar impostos.
A transformação de funcionários caros em Pessoas Jurídicas, as PJs, por exemplo.
De vez em quando, isso traz problemas, mas o benefício parece ser
muito maior que a custo nas contas da Globo. Neste momento, um dos PJs,
Carlos Dornelles, trava uma disputa jurídica com a Globo.
Semanas atrás, em São Paulo, eu soube que o jornalista Paulo Moreira
Leite – que eu contratara para a Época pela CLT, é claro – fora
transformado em PJ depois de minha saída do cargo de diretor editorial
das revistas da Globo. (PML hoje está na Isto É.)
É o chamado vale tudo para crescer.
Num ambiente de acentuado declínio das mídias tradicionais por conta
da internet, você pode imaginar o grau de ansiedade – e agressividade —
dos Marinhos para continuar a crescer.
O fato novo, aí, é o jornalismo digital.
É mais fácil controlar tudo quando nada é noticiado, evidentemente.
O jornalismo digital acabou com isso. As coisas saem. A opinião
pública é informada de coisas como a sonegação na compra da Copa.
Em outras circunstâncias, dois ou três telefonemas dos donos da Globo
bastariam para que ninguém noticiasse na mídia tradicional. E você não
saberia de nada.
A mídia digital liquidou esse controle subterrâneo das informações.
Quem ganha com isso é a sociedade.